domingo, 25 de março de 2012

A morte na ponta da agulha



A morte na ponta da agulha

Chovia. Minha mãe chuleava roupas por dentro, num verbo antigo, hoje fora de moda. Minha amiga e eu cochichávamos num canto da varanda, uma maneira de tornar ausentes nossas presenças. Ela moça feita, eu em metamorfose, sem saber se era lagarta ou borboleta. Os mosquitos nos rodeavam. Era sempre assim quando chovia. Eles apareciam em nuvens e pelo menos a metade acabava refestelada num açúcar falso distribuído em pires pelos quatro cantos da casa. Naquele sábado eles chegaram de surpresa, como a chuva, e sobrevoavam a mesa repleta de costuras.
A voz de minha mãe ressoou atrás de nós:
-  Zilda, quanto você me dá pra eu matar um mosquito com essa agulha?
- Quinhentos! Respondeu minha amiga, sem pestanejar, acreditando que minha mãe jamais conseguiria tal façanha.
Atônita, aproximei-me da mesa para testemunhar o inusitado fato. Claro que tentei dissuadir minha mãe da aposta, mas ela nem considerou a minha ansiedade. Aquela quantia era um pouco elevada para se perder em umas poucas palavras ditas a esmo. A costura de um vestido custava trinta, quando muito cinqüenta, de modo que passei a calcular quantas costuras minha mãe perderia naquele jogo imbecil, certa que jamais ela conseguiria espetar um mosquito com uma agulha. Foi a única vez que me lembro  julgar minha mãe irresponsável.
- Quantas tentativas tenho? Perguntou minha mãe, atribuindo a nós a função de juiz.
- Três, antecipou minha amiga, que era mais velha e bem mais esperta do que eu.
Para assistirmos ao teatro protagonizado por minha mãe e as moscas, escolhemos o melhor ângulo e nos posicionamos estrategicamente para não perder nenhum movimento.         Minha mãe ergueu a mão com a agulha presa entre os dedos. Havia uma bravura qualquer imposta no ar. Após um silêncio de concentração, como os que antecedem às grandes competições, mirou algum mosquito que se confundiu diante de nossos olhos e, num frêmito desconhecido, atravessou o vôo coreográfico de um inseto experiente e o espetou, na primeira tentativa.
Minha mãe acertou o ponto necessário para nos causar vertigem e afetar a garganta de nossa convidada que pigarreou sem voz, sem atitude e, àquela altura, sem o dinheiro. Eu também tardei alguns segundos para esboçar reação: uma gargalhada que  cavou um sulco no tempo das risadas e dos afetos. Minha mãe era minha heroína, sobretudo depois d’eu fazer várias tentativas frustradas no jogo com os mosquitos. Igual a minha amiga, eles eram mais espertos do que eu, porém inferiores a minha mãe que, em minha concepção de adolescente, era uma gladiadora instrumentada de agulhas em vez de espadas. Acolhia nas mãos movimentos arrebatadores e, ao cruzar o eixo invisível da distância, colhia a vida dos mosquitos sem qualquer alvoroço, como um efeito matemático. Uma idéia recorrente passou a persuadir-me: a vida era sustentada por uma equação assombrosa situada entre a pele dos dedos. Todos nós poderíamos jogar com a morte, manipulá-la, espiá-la de longe, de perto, adiá-la, antecipá-la... ela era  banal, poderia chegar numa hora qualquer e ficarmos sem saber de onde veio, se de fora, de dentro ou se já estava ali, à espreita.
Hoje choveu no escuro de um tempo acinzentado. Botei o computador sobre a mesa da sala e fui colocando sobre as páginas do Word essas memórias que se estilhaçam com o sopro da chuva. Fui percorrendo o fuso do tempo, repetindo passos nas asas de vôos distantes. Senti-me quase uma mosca a sobrevoar  nossa antiga casa, a ouvir os sons ocos que me empurraram na linha difusa do existir. A impressão é de que as linhas se escrevem sem mim, e minha missão é apenas vagar, descompromissadamente, sobre o ar úmido.
No entanto, entre o escrever de uma palavra e outra, o mosquito da memória pousou sobre a minha mesa. Parecia haver chegado do passado. Gordo e enverdecido, pelo acúmulo do tempo, veio retomar o fio da história. Mas eu, como a maioria das pessoas, fui educada para matar moscas, exterminá-las na coletividade de seu existir. Aprendi, desde a infância, que elas são vetores de infecções, de cólera, febre tifóide; alimentam-se de materiais contaminados, entre outras coisas. Matá-las é uma obrigação. De modo que não foi precipitado pensar em aproveitar a ocasião para testar minha pontaria. O improvável seria encontrar uma agulha em casa. A ferramenta mais próxima e possível era um lápis afiadíssimo que não tardei em usar. Deve ser coisa da genética: lápis arremessado, mosquito morto.
Escorei o lápis no caneteiro com o mosquito na ponta. Era uma ostentação, de certa forma, o meu troféu. Em seguida, tentei me concentrar na escrita, mas vi que o mosquito  teimava em viver. Esperneava, debatia-se entre a vida e a morte. com as patas viradas para cima, lutava com as forças que lhe restavam para fugir da morte e da minha presença atroz.
Comecei a arrepender-me. Uma morte é sempre uma morte, marcha para o fim de alguma coisa e destrói sonhos, planos, projetos, esperanças e até o desejo da imortalidade. Não há limites para sua destruição, é uma eternidade de silêncio. Provavelmente, moscas não se dão conta disso, mas querem desesperadamente viver, vagar, existir, travando um embate desleal com a indesejável.
 A morte começou a ganhar proporções sinistras, crescia diante de meus olhos, começava a cheirar, a incomodar os ouvidos, amedrontar. Peguei o lápis e iniciei um processo de ressuscitação. Levei-a até o jardim, na esperança de que o ar livre lhe trouxesse novo fôlego. Mas, não podemos atribuir vida a qualquer ser. A equação não é a mesma. A mosca matuzalênica travava um embate desleal com a morte, que já era muito mais forte do que ela. Não pude fazer nada, apenas odiei a morte selvagem e todas as suas afilhadas. Odiei qualquer morte que faça oposição à vida. Odiei minha falta de escrúpulo espiritual, minha falta de consanguinidade com os mistérios das coisas. Uma mosca não é só uma mosca, é a representação de vida. A vida monótona e necessária, mandante e desconhecida que não pode ser vista sempre pelo mesmo prisma que herdamos para eleger as pautas da existência. Às vezes é preciso descer aos abismos sombrios da consciência humana e fundir-se com o desconhecido. Esse inseto banal provocou-me um grande mal-estar, mas como não tenho forças para me revoltar contra meus pequenos absurdos, apelo à literatura onde é possível dizer coisas chocantes sem o terror que lhe é peculiar, como a morte na ponta da agulha, ou talvez, na ponta do lápis.

                                                                  Lucilene Machado