Diários
de bicicleta
Sábado
à tarde, quase outono, quase frio, quase nostalgia ressoando no ar e você sente
que a felicidade está bem perto, um movimento e você será capaz de tocá-la.
Pela cidade, prenúncios de estreias, de shows, de recomeços, gente voltando das
férias, motos correndo e eu a espiar a manifestação de um prazer quase do
avesso. É a vida num país tropical.
O
homem, que cruza meu campo de visão, carrega uma mulher no guidão da bicicleta,
o que me trouxe à memória qualquer coisa inquietante. Já estive sentada no
guidão de uma bicicleta. As mulheres de minha geração estiveram. Era estar
dentro de um abraço frouxo que poderia ser apertado a qualquer momento. O homem
encurvava a coluna como uma forma de proteção à sua passageira que, por sua
vez, abria um sorriso aos passantes. Era
preciso certo equilíbrio para superar as curvas, os desníveis do caminho, o
areal acumulado nos vales e quase sempre se terminava em queda. Bicicleta de um lado, corpos de outro.
Ficávamos estatelados no chão a olhar o céu, porque valia muito mais olhar o céu do que a terra.
Depois
o relógio foi torcendo o tempo sobre os viadutos, sobre os asfaltos velozes
onde voam os carros e, o cinza subúrbio poluiu o céu. Os sonhos que eram poéticos
se acabaram, como acaba qualquer modismo.
A vida vai urdindo o necessário para dissimular o romantismo dos jovens e já
não se vê, pela cidade, cenas como essa. Elas desapareceram dos reinos que
desapareceram dos mapas. Ficamos nós tropeçando em memórias antigas, porque as
recordações abarcam tudo e não apenas as grandes efemérides do coração.
Invejei
a moça de cabelos loiros esverdeados (e diga-se, esvoaçantes) que mantinha as
pernas esticadas para dar equilíbrio ao ciclista. O casal cheio de gestos
livres e risos soltos possuía seu centro de gravidade, seu eixo, sua densidade
própria que os olhares opositores não modificavam. Não se cansava de fazer
girar a bicicleta como também as sedutoras formas humanas de músculos e
tornozelos. Aquelas duas pessoas vagabundeando nas ruas eram o centro do
universo. Um universo do qual eu estava à margem. Pareciam pedalar entre os
campos de lavanda, de um passado qualquer, e nem se deram conta do meu olhar
esticado, tampouco dos suspiros retidos no meu peito. Calei-me para ser digna
de observar, dentro dos limites dos meus olhos, a forma loura e esvoaçante da
vida escorregando pelo tempo, porque a eternidade é feita de cenas simples e
inesquecíveis que podem nascer a qualquer momento. Mas, confesso, senti-me
embrutecida. A alma querendo escapar, querendo atirar-se sobre a bicicleta, querendo
girar... Corri para casa segurando a barriga, segurando a vida a sacudir-se, a
alma insurgida, feito um filho que quer nascer, as vísceras mudando de lugar, ameaça
interna, prenúncio de furacão. Eu que andava tão acostumada a coisas prontas
não suportei a poesia alheia. O desejo começou a tomar formas estranhas.
Precisava me redimir, me purificar, me livrar daquela inveja grudada no
estômago.
Em
casa, baixei o filme Butch Cassidy & The Sundance Kid
(Dois homens e um destino) e assisti
várias vezes, até a alma se aquietar. Acabo de olhar no espelho e ver-me partida
em muitas, todas muito parecidas, todas com a mesma matriz a arrebanhar pensamentos, a dar teto a um mesmo silêncio
até sermos justificadas. Porque não há mulher, por essas bandas da terra, que não
merecesse viver uma cena como esta...
Lucilene Machado