A insustentável leveza do ser
Apesar do título, não tenho nenhuma pretensão de me
aprofundar na literatura de Kundera. Apenas uma analogia com a ideia principal
da obra: tudo o que apreciamos pela leveza acaba bem cedo se revelando de um
peso insustentável. A vida é balizada por pesos, segundo ele. Quanto mais pesado o fardo, mais próxima da terra está
a nossa vida e mais real e verdadeira ela é. Por outro lado, a ausência total
de fardo faz com que o ser humano se torne leve, mais leve do que o ar, e faz
com que ele voe, se distancie da terra, do ser terrestre, faz com que ele se
torne semirreal, que seus movimentos sejam tão livres quanto insignificantes. Então,
o que escolher? O peso ou a leveza?
Perguntas para as quais não vejo
respostas concretas. Não somos capazes de determinar os limites das
possibilidades humanas que traçam as fronteiras da nossa existência. Nos
inventamos o tempo todo nessa incongruência de peso e leveza, nunca estamos
certos se estamos agindo bem, mas sim, que estamos agindo como queremos.
Queremos voar, elevarmos-nos, subir, subir... até que vem a vertigem e a voz do
vazio, embaixo, começa a incomodar e queremos terra, raízes, um território para
chamar de nosso, conforto, consolo, laços, rotina. Até acordar ao lado da mesma
pessoa, todos os dias, se revela de uma beleza inexplicável. E Kundera chega a
uma conclusão sem nenhuma certeza: só tem valor aquilo que pesa.
Kundera explora as relações de dois
casais. Penetra com profundidade no pensamento incoerente do ser humano,
procurando alguma explicação para o não-sentido da vida. Impossível, como
leitor, não fazer ponderações, não pensar a minha maneira de pesar as relações,
levando em conta, naturalmente, os estereótipos que a vivência carimbou em mim.
E foram tantos. Provavelmente minha unidade de medida para um relacionamento
seria a palavra, as ações e o silêncio. Toda relação precisa de palavras. Elas
são condutoras dos sentimentos. São delicadas, românticas e tão poderosas que
são capazes de ressuscitar o que está morto. Mas são igualmente perigosas. Se
não forem bem dosadas podem ferir de morte. Na palavra reside a complexidade de
uma relação, sobretudo porque ela pode ser traída pela verdade das ações. As
ações podem condenar as palavras e torná-las malditas. Nada pior que uma
sentença maldita trançada sobre a nossa cabeça. Daí as leves escolhas: algumas
ações e palavras preventivas. Limites demarcados para conter sentimentos.
Ausência de futuro. Vínculo frágil. Euforia. Satisfação, mas, sem os silêncios
dos cúmplices, sem a sintonia sossegada dos que estão distantes, sem o
exercício sereno de quase tocar o destino do outro. Sem sentir o grão da alma
do outro a nos arranhar os olhos. Um detalhe: há riscos. Quando o silêncio é
molhado, dói. Dói mais do que a dor, macera nossa existência, é o amor vivido
em suas complexas e assombrosas disposições.
Para Kundera, o ser humano em suas
pungentes solidões, tem a necessidade profunda de amor. E o amor está na
categoria do pesado. O amor gangrena, fica incrustado embaixo da pele e é
preciso ter a coragem lenta de vivê-lo. É uma maneira de sentir a vida fincada
em nós como os caibros de uma cerca e, como Quixote, não nos queixarmos da dor.
A nenhum escriba jamais ocorreu lamentar essas feridas. Apenas ruminar a angústia
e escrever versos.
Milan é bastante contundente quando
trata da vulnerabilidade de interpretação de cada individuo. Somos incoerentes
e pagamos um alto preço por meras
questões de orgulho, obsessão, medo, estado de espírito e até mesmo burrice. O consolo
é que somos a maioria. Muitos são os que caminham ao nosso lado na solidão,
preparando-se para o avanço do mundo, fazendo da harmonia um compromisso a qualquer
preço, querendo ser sonhados, mas não querendo sonhar, vivendo a evidência dos
outros e desviando-se, sempre, dos caminhos encantados, ainda que
inconscientemente.
Lucilene Machado