Coringando
Queria te contar que vi o filme “Coringa”. Não tem
qualquer relação com os filmes franceses delicados e sensíveis que vimos
juntos. Lembra-se de “O fabuloso destino de Amélie Poulan” que chegamos a ver
três vezes? Era uma protagonista se entregando aos prazeres de sua rotina
insignificante. Nem era preciso muita sensibilidade para perceber a razão de
nossa identificação. “Coringa” sim, me exige um pretexto psicológico para
explicar a razão de ter gostado tanto. É um longa-metragem marcado por certos
clichês, como a da velha narrativa do homem bom que se envilece, as explosões
sangrentas dos filmes comerciais, a maquiagem/máscara já usada em tantos outros
filmes e etc. Salvo esses detalhes, é uma produção incomodativa, muito. Por
trás da tentativa de agradar a gregos e troianos, há uma leitura
simbólica/metafórica muito mais profunda do que a encenada por um homem com uma
enfermidade mental, controlada por medicamentos, que ganha a vida como palhaço
e cuida da mãe em um velho e opaco apartamento.
É, antes de tudo, um homem influenciado pela
televisão, e esta molda sua maneira de pensar, sonhar, imaginar. A TV funciona
como uma fábrica de sonhos. Ele sonha com um pai personificado no apresentador
de TV, sonha em ser famoso, em ser um comediante stand up e fazer as pessoas
rirem, mas sua vocação vital é para a tragédia. Vive uma aparente normalidade,
entretanto, o que não se percebe, é a gestação de um monstro que vai nascer de
uma estrutura social que deixa as pessoas invisíveis. Arthur é um homem
tentando se encaixar em algum lugar, tentando ser aceito na sociedade fraturada
de Gotham, tentando pertencer a
qualquer classe, mas não consegue se inserir. Sempre só na multidão, o
protagonista busca uma conexão, recorre às ruas grafitadas de uma cidade hostil
e não encontra qualquer fio de afeto. Mesmo sem cometer qualquer tipo de crime,
é tratado com vilipendio, deboche, humilhação e violência. O que possui são duas máscaras. Uma para seu
trabalho como palhaço e a outra que não pode tirar, é uma tentativa de se
sentir parte do mundo que o rodeia e não o homem incompreendido a quem a vida
está golpeando diuturnamente.
Há muitas temáticas em “Coringa” que merecem ser
desdobradas. Uma delas é a questão envolvendo a mãe, que é considerada louca
sem demonstrar nenhum indício de loucura. Fica subtendida uma força patriarcal
que converge para o seu enlouquecimento. O resultado é uma mulher frágil, destituída das
ferramentas de luta, que escreve cartas com letras de calígrafa, perfeitas,
como um único meio de pedir socorro. Isso leva a crer que a desgraça da mãe foi
conhecer um homem poderoso com quem se relacionou até conceber um filho. Como
forma de negação, esse homem a internou em um hospício e inventou a narrativa
de que a criança fora adotada. Esse pai ausente tem a cumplicidade de outros
homens, formando uma rede de proteção difícil de penetrar. O filho, que
descobriu por acaso a identidade do pai, tenta furar o bloqueio, mas é engolido
pelo sistema criado pela sociedade abastada que, incisivamente repetitiva,
convence até mesmo as vítimas de que são culpadas pelos
próprios infortúnios.
“Coringa” é a alegoria da sociedade cada vez mais
injusta. É um soco em nossa cara individual e coletiva. É uma forma de
indignação, um protesto, um pedido de socorro. Dependendo de quem assista, pode
ser uma arma afiada ou um despertar da consciência. Arthur Fleck torna-se o
representante involuntário das ondas de protestos dos pobres contra os ricos,
dos cidadãos contra seus governantes, dos operários explorados contra os homens
brancos exitosos que conseguiram chegar alto explorando a mão-de-obra barata,
roubando do sistema político, fechando os olhos para os que clamam por um pouco
de esperança.
As carências que tentam ser acobertadas pela vida
chegam a incomodar o espectador desavisado que espera encontrar uma produção
que dialoga com o Coringa de Batman. Não, não dá para sentir ódio desse
anti-herói, sentimos pena, torcemos para que ele não morra, para que seja
regenerado, seja envolto em um espírito de solidariedade, mas o individualismo
determinante lhe oferece uma arma carregada e a desgraça se concretiza na sua
descida profunda à loucura. Ainda assim, muitos outros loucos alçam voz para
acompanhá-lo. Arthur emerge dos abismos como um líder perigoso de uma sociedade
louca. Um líder esquizofrênico que mata, ri, dança sem que nada lhe importe. Um
homem com um caos interno que se propaga e contagia os milhares de habitantes
no caos dos porões, dos becos, das favelas e na miséria invisível que caminha
lado a lado com as elites.
Não é para defender Arthur que a massa se levanta
e sim para defender um palhaço anônimo, protótipo de qualquer um de nós. Assim
como na vida real, é mais fácil ver o personagem como vilão, como o sujeito que
se negou a ir à escola, do que como vítima da opressão, da intolerância, da
desigualdade e do sistema excludente que explora e esgota o indivíduo e o
abandona às margens, quando não há mais interesse. Neste mundo em que
preconceitos de todas as ordens passam a ter raízes cada vez mais fortes e a
injustiça torna as minorias impotentes, é preciso refletir o enlouquecimento da
sociedade antes de nos afogarmos em nosso próprio lixo físico e mental.
Enfim, você deve estar se perguntando por que
estou escrevendo com uma linguagem tão crua, tão descosturada da poesia...
talvez seja para me desfazer da memória incômoda que grudou na parede do meu
cérebro após a saída do cinema: Gotham
City é aqui.
Lucilene
Machado