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Um desconhecido, Borges e eu
O metrô é um dos espaços mais democráticos de Madrid, também é um dos mais interessantes quando se quer refletir a própria condição de ser em relação ao outro. Sempre é possível encontrar o nosso extremo oposto, como também uma infinidade de pessoas com quem nos identificamos. Por exemplo, o moço de rosto desconhecido que está sentado à minha frente e que lê uma edição inglesa dos contos de Borges está muito mais próximo de mim do que muita gente que eu vejo diariamente. Isso pelo simples fato de sustentar nas mãos esse livro em particular. Não, não é um simples fato, isso é uma ocorrência que pode determinar parte da personalidade dessa pessoa que eu nunca vi antes. Posso supor, entre outras coisas, que o homem que lê Borges no metrô seja um intelectual inglês e que está na Espanha para estudar literatura de língua espanhola, o que nos faz ainda mais cúmplices. Ou, talvez seja apenas um jovem senhor inglês que nunca ouvira falar antes de Borges e, sem nenhum preventivo, arrisca-se, diante de todos, a desvendar o universo fantástico do autor. Nesse caso sinto pena. Lembro-me da minha primeira vez. Da voz borgiana a contornar meus sonhos impossíveis e a dizer para eu ir além, um pouco mais do que consigo chegar. E eu com aquela sensação de abismo próximo, de que é melhor me manter distante, não fazer nenhum pacto com aquela voz cega, não me aproximar daquelas mãos tecedoras de lendas que fatalmente irão me perseguir pela noite afora, etcétera e tal. Tão forte o impacto que tenho vontade de dizer ao moço: “desista! Essa infinidade de palavras parece dizer apenas uma coisa: bando de idiotas.” É assim que me sinto quando leio Borges. Creio que a manifestação dialógica mais profunda dele está situada em outro plano da psique, o que me (nos) leva a padecer de um estranhamento incógnito. Impossível reter Borges num curso de começo, meio e fim. Tudo se apresenta como facetas, como elos que não sabemos articular. Fica uma ansiedade, um tremor, uma nostalgia de que alguma coisa estava ali, talvez tão perto de ser desvendada, mas escapou.
De onde estou, sigo anonimamente a observar o desconhecido. Quisera chamar sua atenção e sinalizar que eu também pertenço a essa fé. Também já senti admiração, paixão e até ódio por esse escritor argentino que cada leitor recria à sua maneira. Mas o moço não se dá conta do meu reconhecimento. Não percebe que somos ilhas de um mesmo arquipélago, que tenho vôos de gaivotas no olhar e que poderíamos juntos sobrevoar todo o mapa da América latina sem sair desse trem. Poderíamos fazer nossas realidades superar quaisquer dúvidas nesse campo de incertezas em que eu e ele circulamos. Poderíamos comprovar uma série de convergências pelas quais lutamos separadamente e sem nos conhecermos, mas que agora encontravam-se nessa ponte metafísica engenhada pela literatura. Mas... (detesto as reticências) o que se abre nesta tarde é apenas um bocejo sonolento da boca de um desconhecido que deixou de se apresentar a mim por pura falta de atenção. Também me recusei a incomodá-lo indo me apresentar. Há tantas maneiras melhores de conhecer pessoas. Todavia, mais fáceis. Apresentar-me nessa altura e condição era uma concessão ligeiramente piegas, imposta à nostalgia de um tempo em que ler o mesmo livro era fator de identificação, que a memória recolheria algumas palavras, alguma distração do autor, algum susto que nos deixaria de almarrepiada, ou nos faria chorar durante a noite com a cara metida no travesseiro e as mãos sabe-se-lá onde...
E outra vez a reticência. Agora para dar passagem ao homem que desceu sem me fazer caso. Toda falta de interesse se paga com uma perda – creio que foi Borges quem disse isso. Pensei, com alguma tristeza, no longo período em que as emoções estéticas deixariam de existir e com falsa indiferença fiquei olhando o homem afastar-se como se tivesse apenas se afastando. Como se isso fosse uma ação corriqueira e comum. Enchi meus olhos com a realidade estúpida e solitária e até o final da viagem deixei de pensar nas coisas que perdemos sem saber que as estamos perdendo.
Lucilene Machado
Passageiros do anonimato vão à festa borgiana em uma viagem de metrô. Lêem as cartas mais esquisitas. Roem as unhas por não terem o que roer e a literatura ilumina a cegueira de um olhar não comparecido. Borges a espreita, Lucilene. Um conto de leitura agradabilíssima.
ResponderExcluirIsaac, você escreve lindamente, uma honra tê-lo como leitor.
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