Limpando a alma
Seu
Jorginho limpa o quintal, corta os galhos secos, apara a grama, arranca as
ervas daninhas, rastela e assovia uma canção antiga. No meio das folhas
molhadas, do vento fino, do cheiro da erva, das coisas puras, a vida acontece
em sua totalidade. Do outro lado da parede estou eu, limpando meu computador,
desfazendo-me de textos que foram guardados para ler um dia, de mensagens
prontas enviadas coletivamente, imagens de cidades que gostaria de conhecer,
fotos de pessoas desaparecidas, animais perdidos, entre outras coisas que
teimam em permanecer nos compartimentos do meu PC. Com um pouco mais de
cuidado, vou apagando mensagens que já deveriam ter sido excluídas, mas estão
carregadas de sentimentos. Emails com dores anexadas, com silêncios grudados na
página principal e esparsas palavras que rangeram ao toque do teclado. A vida
acontece dentro dos meus vazios.
Seu
Jorginho me chama para saber se quero enterrar as folhas deixadas pelo
outono. Pergunto se as folhas não têm de
ficar na superfície para proteger as raízes no inverno. Ele diz que eu sempre
respondo com outra pergunta e muda o tom, diz que vai cortar os galhos do
coqueiro. Percebo que ele rechaça o exercício de soletrar a vida. O pensamento
escurece. Ele deve ter lá seu HD entupido
de sentimentos antigos, coisas fossilizadas que não há como explicar. Seu Jorge
nunca atravessou os portais da Internet, nunca usou a palavra para tocar a mão
de outra pessoa, nem deixou a hiper-realidade ocupar espaço em sua vida. Do
reino da cibernética, da luta entre o simulacro e a realidade, ele saiu
vencedor.
Volto
para o computador sentindo-me a parte vencida. Seu Jorge não acredita em nada
virtual, o que julgo normal. A literatura sempre se utilizou de personagens
céticos, recalcitrantes, espantados, prontos para se maravilhar. Do tipo que
enfia as mãos nos bolsos e imita um homem tranquilo sobre a superfície do mundo. Mas isso não é ficção, é a vida
balançando nas folhas das árvores.
Reorganizo
as pastas que criei ao longo da minha vida cibernética. Pastas com titulações
do tipo “família”, “amigos”, “amigos de verdade”, “viagens que fiz” “livros em
espera”, “textos para escrever”, “coisas para esquecer”, “sem soluções” e
outras que estão voltadas para o burocrático e não vale a pena botar os nomes
aqui. Durante o dia, várias vezes cruzo a fronteira do real para o virtual e
alimento essas pastas com fotos, desenhos e principalmente, palavras. Às vezes
celebrações ingênuas, outras vezes rechaços, amores diluídos em comunidades
sociais, solidão estranha que me acariciou a face numa noite de sábado...
palavras para sentir o que não aconteceu, palavras tomadas de surpresa, nuas,
ditas às duas da tarde. Pensamentos amarelos que guardam alguma essência sem
definição e uma indagação filosófica: “será que nos amamos?” Por supuesto, no
princípio reina a palavra.
Nas
pastas, como nas plantas, opto por manter minhas raízes protegidas, e mantenho
impressões quase sem nexo que narram, indiferentemente, a minha autobiografia
sem fatos reais, a minha história sem vida, confissões que fiz sem vivê-las,
mas onde estive, inteira, esperando o tempo passar.
...eis que esvoaçando igual a uma das milhares das folhas do outono que prepara a retirada, uma página perdida do Diário Secreto D'uma Mulher dos tempos Modernos!
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