Remate de
ano
Final/início
de ano é sempre um período angustiante. Talvez pelas contabilizações das
perdas, talvez pelas reflexões internas que nessa época assumem uma dimensão
maior que no decorrer do ano e toda uma série de razões que esta página não
comportaria. Meus amigos também, quase a maioria, ficam angustiados nesta
época, o que perturba ainda mais o meu espírito. Há certa desproteção pairando
no ar, como se a casca do mundo fosse se romper a qualquer momento e eu pudesse
ser atirada em algum abismo particular.
Se eu
tivesse fé, faria uma oração. Mas perdi a dimensão da fé junto aos contornos do
raciocínio. O que tenho é medo. Herança de Adão. Ninguém está totalmente
liberto desse legado bíblico. O pensamento
ameaça com suas possibilidades e vai nos levando ao limite da
existência. Às vezes creio que não sou eu quem está pensando, mas uma voz
incansável que brota de um deserto que tenho dentro. Minha dimensão interior é
infinita. Tento delimitar, recortar, botar estacas... no entanto é impossível
conter o grito de dentro, sobretudo nas ocasiões de términos e reinícios.
Sofro delicadamente as mortes que fui obrigada a
aceitar. Mortes grandes e pequenas. Perdi uma prima, perdi um tio, perdi uma
amiga. Perdi frases literárias de escritores que partiram para outra realidade
e nunca mais voltarão a escrever: João Ubaldo, Rubem Alves, Suassuna, Manoel de
Barros, Horacio Ferrer... Perdi um amor, ou, sofri a morte do que poderia ser
um amor e não sei se foi, se é, se morreu mesmo, se um dia vai ressuscitar e
encher meu corpo novamente de pecados...
Também me angustio com as relações que terminaram sem
mortes, que ficaram sem finais, se diluíram no tempo e no espaço sem qualquer
desfecho. Esfumaçaram-se em fumaças confusas até um infinito céu tingido de
azul medíocre. Esses apocalipses que não aconteceram continuarão a agonizar
internamente sacrificando a alegria de muitos dias no ano.
O que não conto, entretanto, é que também matei.
Cuidadosamente ou cruelmente... o algoz nunca consegue mensurar os requintes
utilizados, fato é que matei esperanças em plena flor, matei afetos, matei
desejos, matei possibilidades, vicejos... A gente só consegue viver uma mínima
parte do que há dentro, por isso matei muitas de minhas histórias, matei a mim
como personagem, esmigalhei o sentido das mãos que se dão, dos corpos que se
tocam, das almas que se sentem. Se me arrependi? Algumas vezes sim, outras não,
a vida toda é feita dessas emboscadas. Às vezes rimos, às vezes choramos e
sempre o medo, esse pó mortal grudado em nossa pele, o qual inalamos,
diuturnamente. Colocamos filtros para não amar com força, colocamos filtros
para que a emoção não se aprofunde e ainda assim, em algum momento, o tempo
para diante de nós e somos obrigados a prender a respiração para que não se
torne ofegante.
Felizmente. O pior dos enganos é a tranquilidade da
solidão, ainda que às vezes esta se faz necessária. O que nos salva ainda é o
afeto. Exibir a vida vazia em telas de smartphones não vai preencher a carência
afetiva. As mensagens por redes sociais não abrigam as emoções de um abraço,
nem vão preencher o vazio de uma humanidade deficiente de amor. A perplexidade
diante da vida nunca poderá nos deixar. Entra ano, sai ano. As nuvens valsando,
o vaivém do mar, a poesia das flores... Que o amor nos alcance sempre com todas
as possibilidades de sensações e que possamos enfrentá-lo sem medo, sem
máscaras, sem smartphones.
Lucilene Machad