A
estética da dor
Lucilene Machado
Sou parte de um grupo de pessoas que sofrem dores
incuráveis. Não é necessariamente uma dor física, não é dor que atormenta, não é dor que incomoda paulatinamente, não é
dor que rouba a felicidade... é uma dor fina recolhida na sala de espera da
vida, em profundo silêncio. Algo difícil de explicar, já que a brutalidade da
linguagem engana o pensamento com suas voltas e contorcionismos e não sabemos
identificar onde está localizada tal dor. A língua, quando não se reveste de
sua forma mais abstrata, desvia os sentimentos para outras esferas, onde se
formularão inúmeros matizes para
compreender a vida, esse embuste de Deus, que também não compreendemos.
Essa
dor de que falo não pode ser tratada em consultório de psicanálise, simplesmente
porque ela desaparece quando tentamos conceituá-la. Mas sabemos que ela seguirá
entranhada em nossos músculos e, inclusive, sabemos o momento em que irá doer.
Sempre que uma chuva fina cair sobre o asfalto negro, em uma tarde morna e
cinzenta, ela tomará conta da vida e nos restarão apenas os olhos abertos e
vazios. Quando calculamos mal o nosso tempo e ele sobra em alguma dobra do dia
trazendo em si lembranças de tantos outros dias, dói, dói, dói. Quando a
madrugada sobrevém, dormem as pessoas, dormem as coisas e o sono não chega, os
pensamentos começam a escorrer pelo corpo, pelos sonhos... a dor morde, rumina,
mastiga, engole, metaboliza, dilui-se pelos poros e volta a se instalar no
descampado do peito.
A dor é uma questão privada, distinta uma das outras.
Os mais capazes chegam a produzir a estética do padecimento. Frida Kahlo pode
ser sua mais original representante, portadora de múltiplas dores as
transformou em arte, fazendo do corpo o cenário da própria vida. Mas sua maior
dor foi na alma. Das vinte e cinco punhaladas que levou, dizia, só uma foi
mortal, a da alma. A dor sinistra da traição sacudiu sua vida inteira e cravou
espinhos até em seu pensamento.
Clarice
Lispector foi outra que converteu a dor em beleza. Sua dor mais cruel foi a
descoberta da esquizofrenia do filho. Não, ela não confessou. Foi uma dor
impronunciável. Desde então foi guardiã de uma tristeza infinita. As mães
sofrem dores inconfessáveis. Dores desconhecidas que atormentam o pensamento,
dores reais e irreais. As mães de filhos-mortos, então, carregam uma dor de
palavra composta lacerando o peito diuturnamente. Uma dor de feridas abertas
que não nos compete julgar. É preciso valentia humana até para imaginá-la.
Enfim, todas as mães sofrem dores silenciosas, todas atravessam um deserto
branco umedecido pelas lágrimas.
Florbela
Espanca também iniciou sua produção literária a partir de uma imersão na
própria dor e comparou-se a um Dom Quixote fêmea a combater moinhos de vento,
sempre enganada e sempre a pedir novas mentiras da vida. A dor era visível em
suas palavras porosas. A solidão se apresentava em um nível tão avançado que
dificilmente seria amenizada. Passou a vida costurando as coisas da vida com as
coisas da morte. Passava os dias alimentando a morte, dando água, comida e
enfeitando-a com flores. Tentou suicídio duas vezes. Na terceira tentativa,
fechou os olhos definitivamente, simples,
docemente, como à tarde uma pomba que tem sono.
A relação
entre arte e dor pode parecer estranha, mas é uma representação clássica.
Aristóteles já dissertava sobre a “purgação” como um conceito de fruição. Uma
purgação que só funciona graças à identificação e à compaixão que sentimos
diante da dor, da morte, da tragédia. A dor tem uma representação na história
da literatura tão importante quanto a beleza. Tem espaço garantido na bandeja
da arte enfeitada com uvas da tarde e vinho da tristeza entregues em odes
intermináveis que entendem as coisas humanas e permitem que, ainda assim, se siga
vivendo no santuário da beleza.
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