Bruno Steinbach
“Os Beduínos”. Acrílica/duratex, 121,5 x 136,5 cm, 1998, Mossoró, Rio Grande do
Norte, Brasil. Coleção: Isaura Amélia Rosado. Catálogo 70.
Amante
Hoje o céu
azulejou o dia, logo cedo, com um azul tropical. A poesia vem sagrada, cravada
nas pupilas de meus olhos. Novembro se propaga por meu campo de visão.
Experimento a nostalgia de todas as coisas vividas, da jornada de cada dia,
dura e linda como um diamante. Agarro esse instante para pensar um verso sobre
liberdade e escrever num papel que está no pensamento. O amor, o ar, as ideias, os modos
de ver... ah, esse meu delírio de existir. Esse meu modo de amar
literariamente, existencialmente, loucamente, de imitar Neruda e hacer una canción desesperada... esse
meu modo retrógado de pensar que ser amante é a forma mais revolucionária de
amar. Imediata, urgente, despida. Não é. A poesia continua subjacente, além de
mim, apesar de mim. Um amor com vida oculta, cheio de meandros, de ar, de
palavras... e tudo se dá da mesma
maneira, o que encontro me encontra e ponto. As palavras perdem a carga
semântica para caberem no poema, para caberem na vida. O caderno aberto, o
lápis apontado e o signo exposto, feito roupa no varal. Palavra seguida por
palavra e um cabo forte torcendo o rumo de tudo. A vida vai ganhando estranhos
ritos. Não há necessidade de lisonjas, a pressa lambe as horas ante o futuro
silencioso, amanhã não sei se existiremos. Se ao menos as horas tivessem garras
para frear o tempo. Não têm. Apenas concordam com o que sinto. Concordam com o
que não deveriam concordar, porque para as horas tudo é como é, e assim que é.
Eu agradeço com um sorriso e recebo outro que me deixa mais alta, próxima de
qualquer paraíso e um olhar refletindo a certeza de que o céu é longe como a
ideia de nunca se chegar a um porto. O silêncio que me embala é o medo de
naufragar. Não sei se a vida é um bem-me-quer ou um mal-me-quer. Ou mesmo se é
uma tentativa de acontecer na vida do outro como um milagre. Um milagre nunca é
esquecido. É um pedaço de tempo guardado no infinito. E eu pensando tudo e
escrevendo na parede do cérebro. De repente, alguém sacode essa hora dupla como
se sacode um lençol e, mesclado, o pó da dupla realidade cai sobre o chão. Mãos
desiludidas acenam um adeus. Os dias ficarão mais longos, as noites também.
Olho para direita e para esquerda e sinto o corpo caminhando pelas ruas reais.
Em minha frente, o horizonte fechando os olhos. Amanhã será um novo dia.
Lucilene
Machado
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