De ausência e silêncios
O mundo segue como algo estabelecido
e petrificado pelos donos das cidades. Bobinas de ruas se desenovelando diante
de nomes antigos, girando conforme suas articulações. Paro em uma rua
abarrotada de árvores chamada Avenida do Poeta. Há muitos poetas nesta cidade,
mas não é de poesia que quero falar, embora ela esteja explodindo infinitamente
cristalina neste dia de sol. Necessito, sim, aproximar-me de mim, romper com
tudo o que me separa do próprio âmago... Deixei-me ir tão longe que quase não
sei quem eu sou. Falo de mim sem nenhuma garantia de saber o que digo, cedo à
fraude fácil de ser a pessoa que não sou. A vida nos facilita sermos
superficiais. Os resultados, a aparência, as opiniões, a história, a liberdade
fingida com a qual me movo por entre ruas.
O “eu” poderia ser outra coisa que
não corpo e alma? O corpo reclama, a alma entristece e uma certeza insiste que
podemos ser aquilo que somos, verdadeiramente, o problema é que não sabemos o
que de fato somos. Não conseguimos extrapolar os níveis subliminares da velha
psicologia. Por outro lado, não conseguimos impedir que forças desconhecidas
avancem em busca do direito de ser. Uma busca superior a nós mesmos enquanto
indivíduos: sermos mais do que homo
sapiens, em seu comportamento standard, ir além da paixão, ciúmes ou
piedade, libertarmo-nos dos rótulos que a sociedade empreendeu para nós.
Quem
não gostaria de vomitar parte de si. Vomitar gestos mecânicos, a consciência
purgativa, a formação cristão-judaica a
condenar, a dor grudada na parede do estômago, a náusea provocada por um
movimento de rotação fatigante, a sensação de ser coagido, o saber que não se resigna e esbofeteia a nossa cara,
além dessa propaganda luminosa, plantada a minha frente, a prever o óbvio: a
vida é um engano pelo prisma da razão.
Às vezes me convenço de que a
estupidez está entre a palavra e o seu significado, muitas nomenclaturas para
um mesmo desconcerto. Um desenho pode ter mais sentido do que um romance. Ou, estou
tentando novamente me incluir nas categorias tranquilizadoras, na zona de
conforto? Romance exige personagens, relacionamentos, separações, conflitos,
morte. Penso nas hierarquias, no estético,
no ético, no religioso... Um homem amando apaixonadamente uma mulher de
inteligência duvidosa. Um autor transgredindo o sexto mandamento, rasgando
papéis em pedacinhos, jogando sobre o tapete da sala, sujando tudo com restos
de frases sem significados, a soar
libidinosamente no ar. Há muitas coisas no mundo precisando de nomes, e há
outras que mesmo possuindo nomes, jamais serão escritas.
Eu ainda me precipito a narrar esses
estados de assombro. E às vezes sou assombrada por seres de carne e ossos. “Um
pouco de verdade e uma aspirina” pediria
Álvaro de Campos. Eu suplico a Deus que me livre do deus cheio de verdades humanamente
estabelecidas. Continuo aqui com minhas fugazes palavras, presas por alfinetes
em quadro de cortiça, e seus respectivos silêncios, que é a vertigem em seu
estado mais puro. Amanhã serei outra.
Lucilene Machado
Acho que também gostaria de vomitar parte mim... Texto tocante! Amei
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