Um amor e um livro
É incontestável que a
leitura é imprescindível para o desenvolvimento humano, à vida
de todo cidadão, sem importar o papel que exerça na sociedade. É ela que
capacita a elaboração do pensamento, promove lucidez, possibilita o sujeito a
se situar no mundo, compreendendo a intrincada teia de relações que o envolve,
de modo que possa se expressar como cidadão consciente de si. Por meio da
leitura, pode-se conhecer o pensamento de pessoas que vivem outra cultura, cultivam
outros hábitos e também acessar todo o
conjunto de conhecimento de pessoas que viveram muito antes de nós, que de
outra forma não seria possível. Por meio da leitura, podemos nos comparar com o
outro e refletir sobre a nossa condição de ser e estar no mundo.
Além de todas estas verdades
sobre leitura, existe uma pouco explorada: a importância da leitura nos
relacionamentos amorosos. Gente que lê quer estar com outros que leem e, a
escolha dos parceiros amorosos está sublinhada por essa possibilidade e não
apenas pela aparência. Nossos interesses não seguem um molde genético-egoísta,
há um jogo social que envolve encanto, fascínio, interação, retroalimentação,
entre outras coisas. Somos seres muito mais interessantes do que a psicologia
nos faz acreditar. Nem toda fêmea procura um macho para proporcionar
estabilidade financeira ou ser pai de seus filhos; nem todo macho deseja
acasalar-se com todas as fêmeas que encontrar. Muitos machos e fêmeas procuram
parceiros menos atraentes fisicamente e menos previsíveis em suas condutas. Uma
mulher bonita, com corpo proporcional, pode parecer atraente aos homens. Bem
como um homem alto com braços fortes, a uma mulher. Entretanto, quando o
sujeito derrapa nas primeiras frases, nosso interesse desaparece num piscar de
olhos. O que nos leva a concluir que os genes “bons” não contribuem para a
fantasia, empatia, criatividade, sensualidade... Os instintos previsíveis são
infinitamente tediosos, iguala homens e mulheres. O que torna um relacionamento
interessante é o jogo sem fim que ele pode proporcionar: o jogo da interpretação.
O amor é uma área de nossas
vidas extremamente ampla, de psicologia complicada e a imagem que o outro nos
reflete tem importância decisiva. O sexo não é apenas uma experiência hormonal é,
antes de tudo, uma experiência pessoal, as reações, os olhares, as palavras, os
silêncios, os gestos podem ter requintes artísticos. Como na literatura,
encontramos os desvios das normas, criamos nossa própria estrutura,
estabelecemos nossos valores, seguimos a imaginação e o fluxo da consciência e
nos metemos debaixo da pele do outro. O “eu” lírico é o primeiro a ser ativado e
preparado para ser fio condutor de uma narrativa em primeira pessoa de duas
personagens. O “eu” autobiográfico interpreta
o estado de embriaguez do cérebro e percebe a grande produção de hormônio no
corpo, qualificando-a altamente excitante na construção de uma gradação poética
epifânica. Impõe o ritmo, introduz palavras, e, interpretando metáforas e metonímias, dentro da grande área
temática, chega-se à catarse, em uma narrativa circular que pode se repetir.
Nosso pensamento
consciente interpreta nossas emoções e dá a elas uma forma. Mas, para conseguir
falar sobre uma sensação, refletir sobre ela, evidentemente, faz-se necessário
conhecimento, leitura de mundo, leitura do eu, maneira de ser e estar no
universo, como nos interpretamos, o que inventamos de nós mesmos, nossas forças
e fraquezas, nossas atratividades, nosso charme, nosso jogo social... tudo está
conectado à prática leitora.
Apesar da mídia
promover um amor carnal, livre, leve, sem compromissos, nada poético, reduzido
aos instintos... é um amor que não transcende ao ego, não cria uma atmosfera de
confiança e intimidade e, com certeza, está em desvantagem ao amor entre
parceiros que criam seus próprios significados. A palavra ainda é o mais forte
alicerce de sustentação de um relacionamento, aliás, a palavra é o próprio
amor.
Lucilene Machado
Mais que uma crônica, um despertador.
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