Labirintos e um dedinho de prosa
Fiz um café forte antes de começar
essa crônica. É um recurso para conseguir estar atenta até o final. Quando se
fala de labirinto, a própria figura representativa da palavra nos tonteia. São
voltas e mais voltas a cercear a nossa liberdade. O primeiro labirinto foi
inventado para prender o Minotauro, um personagem mitológico com corpo humano e cabeça de touro
que assombrou a infância da minha geração. Construído pelo brilhante artesão
Dédalo, o labirinto era uma perigosa armadilha, da qual ninguém poderia escapar
vivo. Até que uma mulher, linda e perspicaz, teve a feliz ideia de entrar no
recinto desenovelando um novelo de linha. Pronto, estava desvendado o mistério.
Ariadne entrega o segredo em troca de
milhares de vidas, inclusive as nossas.
Hoje por mais voltas que damos, nós
as mulheres, temos um fio condutor que nos fará escapar como um réptil de
qualquer labirinto. A minha linha, finíssima, feita de fios de cabelos, tecida
com todo tipo de amarras é a escrita. É nela que me agarro para procurar a
saída. Às vezes, tenho de confessar, ela me deixa desnorteada. Suas letras
etéreas podem dizer qualquer coisa como mentiras notórias ou verdades
elegantemente falsas, atadas com forças imunes ao discernimento. Quando sinto
que poderei desequilibrar e derrapar por alguma ladeira, tranço os fios com
tinta vermelha hemorrágica, brotada da própria veia, e os deixo depositado
sobre a pele grossa da terra, assim posso penetrar nos recantos mais temíveis e
estar segura que encontrarei o caminho inverso, caso queira voltar.
Com o passar do tempo, fui compreendendo
melhor os traçados, a me refugiar em algum desenho côncavo nas horas de perigo
e a jogar com as sentenças decisivas. Já não desperdiço meu fôlego, nem meu
pensamento com as buscas intensas. Sei décor as propostas de amor que por
debaixo não é amor. Já não são perigosas como antes, quando zoavam dentro dos
meus olhos como abelhas. Também já não utilizo
as armas de sedução que possam perfurar algum corpo desprotegido. Equilibrei-me
com a idade, uso palavras quentes para os períodos de incerteza e frias para os
dias de segurança, os dias em que poderei desabotoar a blusa, desabotoar a
memória e deixar escapar toda espécie de tessituras. Chamam isso de fluxo da
consciência. Tudo muito leve e solto como uma dança que gira instantaneamente e
obedece, por si só, os movimentos da natureza que antecede ao grande estrondo
que se chamou vida. Nessas fases, sinto-me em um santuário revestido de beleza,
ou me sinto transformada em uma lenda mitológica, dona da vida, sem correr mais
nenhum risco de me perder. Mas logo vem a consciência, o minotauro que está bem
lá na profundidade do ser e se atreve a me provocar. Ele não sabe que eu uso
tudo para tecer minha escritura, que presto atenção nos fios que vêm dos
sonhos, nos fios que vêm dos animais,
dos rios, das árvores, das pedras, da vegetação rala, das coisas usadas... uso
tudo para trançar os elos que demarcarão o meu caminho. É o que me dá coragem
para ir sempre um pouquinho mais adiante e espiar a fera um pouco mais de perto.
O pior engano é o da tranquilidade. Até mesmo o mais cômodo silêncio contem os movimentos e os ruídos das palavras
que não foram ditas. Sei que isso é lugar comum, mas sei também que felicidade tem
que ser outra coisa, algo além da imobilidade, tem que ser qualquer coisa mais
parecida com um desafio, ou ter ares de unicórnio, rinoceronte, minotauro...
sei lá, nem sei se o que eu quis escrever era exatamente isso, fato é, quando
escrevo me sinto eu, tão completamente eu, que seria capaz de dizer “estou
feliz outra vez”, mesmo que eu tenha de preparar o próprio café.
Lucilene
Machado
Parabéns, muito lindo.
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