Ariano Suassuna: eu leitora
Quando o conheci me apaixonei perdidamente. Era minha
cara metade. Algo normal para uma menina desprevenida. Ele Ariano, eu Ariana,
seria algum sinal? Quis casar, ter filhos, encher o mundo de seres tão especiais
quanto ele. Mas ele era casado, tinha filhos da minha idade e ainda que não fosse,
havia uma fila de mulheres desejando a mesma posição, bem antes de mim. Morri
de desilusão. Não era justo perder o homem da minha vida sem ao menos o direito
a um grito, de longe que fosse! Mas como boa ariana, ressuscitei das cinzas. Me
contentaria em ser a amante, a outra ou estar em qualquer outro posto que me
permitisse interagir com ele. Consegui. Tivemos um caso, literário, melhor
esclarecer. Ele escritor, eu leitora. Tenho certeza que ele escrevia para mim,
embora nunca tenha me visto. Quero dizer, viu sim, mas não se deu conta, nem
percebeu que era eu aquela criatura que vez em quando lhe escrevia cartas.
Cartas que ele respondia pelos livros, pelos textos, pelos discursos... e eu
ficava tão feliz, tão realizada, era uma catarse a cada vez. Tanto que eu já não
suportava me conter. Precisava contar, precisava mostrar a beleza do meu
romance oculto-duradouro que atravessava gerações. Não sei se por necessidade ou vaidade, fato é
que entreguei nosso segredo ao vento das letras. Transformei-me em
leitora-escritora, ou escrevinhadora, para ser mais exata. Tudo que se
desmanchava nas palavras dele era reconstruído nas minhas. Umas coisas se
embaralhavam, outras se sedimentavam, a secura da terra nos nutria. Às vezes eu
ria alto, outras chorava, cavalo perdido, cavalo arranjado, cavalo trotando. Sentia-me
o Sancho Pança de um Dom Quixote do Agreste. Orgulhosa acompanhava-lhe os
passos. O calor haveria de proteger-nos e extinguir os nossos inimigos para
sempre. Eu, fiel escudeira, seguiria guardiã de seu rebanho de palavras. Palavras
que carregam uma verdade apurada e fina, como um fio de cabelo que fragilmente
vai atando mundos. Comédia, tragédia, popular, erudito... Ariano era um
exército composto de um homem só. Duelo, disputa, desgraça, vitória... O que não
havia, passava a existir. Tudo se repetindo, tudo se inovando para confirmar
que a literatura é o espaço do novo dentro de seu tempo.
Hoje valho-me das
palavras dele para dizer que estou amortecida. O nada me atravessou o peito com
uma tristeza afiada. Calou-me aos socos. Sigo vagarosamente pelas margens como fui
orientada. Espero que ele me diga para aonde ir, mas só ouço a voz de um silêncio
desumano vindo de uma multidão de órfãos. A retina geme. Dou passos cuidadosos
arriscando-me a tropeçar nas próprias palavras. A solidão deveria queimar como
a brasa, mas tudo é frio nesse sertão sem Suassuna. Meu amante já não me espera
com a mão estendida. As árvores retorcidas, os cactos, os cipós, as flores das
bromélias dançam em meio a um vento de despedida. O mestre se retirou e nós
seguiremos, em viuvez, nessa andança
para o fim do mundo, fim das coisas, fim do homem...
Lucilene
Machado.
Não sinto claudicar suas palavras, antes sinto a força do amor, a dor da partida, a tristeza de quem fica...diante do fim da vida. Diante de um diamante, que se perde, um referencial que não se acha mais, jóia lapidada, brilho perdido, um amor, um ente querido, um eterno e agora etéreo amigo. R.I.P. SUASSUNA.
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