Desertos e outras infinitudes
Existem
desertos em muitos lugares. Reparo, sem nenhum espanto, que não preciso
inventá-los com as areias secas e ásperas do Saara, eles existem além do espaço
e do tempo a que foram destinados. Há lugares que criam verdades só pelo fato de estarem
expostos, e o deserto é uma verdade absoluta. A verdade do nada, da ausência,
do que não é, por não suportar subexistir. É o silêncio do olhar que sabe ver o
tempo esvair-se.
Aqui
desse apartamento, preciso alongar e contorcer o pescoço, muitas vezes, para
tentar ver o nada. Detrás das construções vizinhas há uma paisagem exuberante,
dessas que povoam as páginas da National Geographic, porém escancara, a
cada metro quadrado, uma alma vendida; escancara a sombra de uma culpa que
aliena a inteligência. O pântano verde, cercado por arames farpados, limita o
alcance do olhar. E eu preciso de infinito, preciso de todos os desertos para
receber o maná dos céus. Deus vive no silêncio do deserto. Quarenta anos
alimentando um povo que ignorou a verdade do amar. As paixões tremulavam sob o
sol como uma deliciosa rival do amor, mas não foram suficientes para acolher o
segredo de Deus. Só o amor suporta o nada. O amor de Penélope suportou a
ausência surda do rei de Ítaca, suportou a falta de palavras, a falta de
respostas... seu aposento cheirava ao enigmático e sufocante silêncio que só as
pessoas predestinadas a amar podem sentir. A narrativa épica conta que ela
tecia e destecia, e no tear trançava a certeza de que Ulisses iria voltar, e
voltou.
Creio
que o dom da espera pertence às mulheres. Mesmo inconscientemente, esperamos a
vida nos possuir da melhor maneira possível. Às vezes, armamos defesas, estratégias de recepção para os dias
imprecisos. No tempo das ternuras, pintamos a boca com vermelho guerra,
sinalizando desejos inconfessáveis e
esperamos o gesto que arrancará os
véus de nossa sublime condição de fêmea.
Mulheres têm os joelhos firmados na esperança, esparramam-se no noturno dos
sonhos, fazendo da vulnerabilidade o seu maior heroísmo.
Mas,
às vezes, o deserto da espera é extremamente longo. Tão longo que nos
habituamos a ele e, se alguma umidade sobe pelos nossos pés, julgamo-la traiçoeira. O crepitar do sol atroz, que
esfola nossas peles, é o mesmo capaz de criar uma delicada couraça de proteção,
um amor-próprio que prefere seu próprio deserto, acima de todas as coisas. O
deserto da palavra não pronunciada, das páginas em branco, da solidão aberta,
do conforto em estar só e da sinistra ausência do amor que não veio no tempo
esperado.
Em
dias como hoje, quando penso a beleza da aridez plasmada nos rostos endurecidos,
sinto-me de mãos vazias. Toda solidão à qual nos abandonamos transforma-se em
uma nudez verdadeira que não pertence ao mundo real, porque o mundo real não é
feito de verdades, é feito de insolências, remorsos e uma indiferença estrábica
a nos olhar de soslaio. Daí o meu contorcionismo para procurar o deserto, para
ouvir o barulho do vento, ver o vazio do
mundo girando em torno de mim e sentir sob a pele o toque sedoso e aveludado da
eternidade. Porque a eternidade é um deserto em que se atravessa, só.
Lucilene Machado
Primeiro conto lido e me emocionei.
ResponderExcluirPrimeiro conto lido e me emocionei.
ResponderExcluirObrigada, Bruno. Está convidado a continuar lendo. Abraços.
ExcluirObrigada, Bruno. Está convidado a continuar lendo. Abraços.
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