Pequenos outonos
O outono chegou ontem pela noitinha, contrariando
todos os calendários. Percebi sua chegada quando a música de um violino tingiu
com vinho as pálpebras dos olhares. Pressuponho que fui a primeira a absorver o
encantamento, a primeira a reconhecer o início das indecifráveis ternuras.
Outono é o tempo das paixões tardias, dos instintos aguçados, do brilho das
estrelas derramado sobre as noites, da
carne sendo tocada pelo espírito... O outono é a compensação do que não foi
aproveitado na primeira etapa da vida,
quando orgasmos se precipitavam na juventude no desejo.
Se o velho Drummond estivesse ao meu lado, na hora em que
o som do violino calou as últimas notas do estridente verão, se me emprestasse
o seu verbo conjugado às últimas declinações, se me emprestasse o seu olhar que
penetrou o mundo vasto mundo, e sua mão cheia de humanidade, com certeza eu
seria capaz de narrar com preciosos detalhes a sensação de completude que o
vazio do outono trouxe.
A pressa dos homens a correr dentro da noite, a caçar
algo que não sabem, por um momento dissipou-se. Um jovem, com um violino,
lentamente invadia com suas mãos, nossos sentidos desacostumados de arte. Veio
como uma luz projetando beleza aos presentes. Seus olhos palpitantes atravessaram-me
como uma flecha. Um homem com quem se pode morrer, pensei precipitadamente. A
morte como uma sagração da qual só os mais puros são dignos. Muita gente
desaparece, desintegra, mas só uma minoria morre. Poucos conseguem rasgar o véu
de alto a baixo. A sublime nudez da morte só é oferecida aos sensíveis. Toda
mulher, depois dos quarenta, carrega uma morte silenciosa no olhar. Uma morte
que navega pelo sangue e arde como brasa. A beleza é transformada em intimidade
acolhedora, pronta para adivinhar, num instante, a eternidade inteira.
É no outono que a juventude se vinga, sonha alto as
coisas da loucura. Nutre-se dessa poesia que se avoluma a cada dia que passa.
De repente, o mundo inclina-se para um lado da noite, uma música risca as
paredes, um olhar arranca as capas da nossa aparência, uma palavra, um
suspiro... e a vida inteira está ali, como um grande acontecimento. Sentimo-nos
criaturas magnetizadas, etéreas e quase conseguimos penetrar, pela fístula da
lembrança, o tempo em que fomos anjos. A leveza da existência agita suas
echarpes flutuantes diante dos nossos olhos. Tudo é instante.
Mas não se pode manter essa abstração por muito tempo. De
modo que voltei ao plano concreto de charutos e licores, de gravatas listradas,
bolsas de grifes e demais atributos exteriores que movimentam o mundo. O moço
do violino, que nos levou a acariciar a felicidade, dava voltas com o garfo num
prato de espaguete. (Músicos clássicos não deveriam comer em público). A boca
que imaginei rescender gengibre, mastigava minhas ilusões. Os lábios carnudos,
que julguei sensuais, pareciam inchados,
picados por uma abelha. Àquela altura, teria a cabeça povoada por preocupações
pessoais, contratos, conta bancária, senhas... já não era o homem com quem requintadamente
eu desejei morrer. A pressa voltou a circular velozmente entre pratos e
garrafas enquanto me afastei com um ar
de espanto, o mesmo ar que corta o meu pensamento e o põe do avesso nessa folha
de papel.
LUCILENE MACHADO
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