Hermética felicidade
Tenho uma admiração secreta-enigmática pelas pessoas
que vivem satisfatoriamente felizes. Eu não me dou muito bem com a felicidade,
falta-me o hábito. Talvez, mui
remotamente talvez, em algum momento eu faça parte desse grupo. Mas só por
alguns ínfimos momentos, em tese, estou sempre indo para um lugar que dói. Sei
que cada ser tem um protótipo de felicidade e a minha sempre me apareceu em
linguagem incolor, além de estagnada e linear, quase sem carga emocional, como
ordena o mundo. E eu preciso de conflitos, preciso de palavras antônimas, veias
dilatadas, delírio, vibrações, fogo e água. Preciso chorar vez por outra,
deixar escorrer sobre a pele a corrente salgada da alma, beijar o resíduo
insípido que há em seu sal. Preciso me apaixonar perdidamente para sentir que
estou viva e desejar sair às ruas, de bicicleta, a cumprimentar os transeuntes, dar comida aos
pássaros ou apenas sentir o vento tocando a face.
Eu preciso da incerteza amorosa para me sentir frágil
e ver derrubado o muro invisível de super-mulher que me isola do mundo. Eu
preciso de dores para sentir que sou gente: dores no corpo para lembrar que a
vida é só uma passagem e, a qualquer momento, como os demais, posso
desaparecer; dores na alma para tecer o rosto dos meus pensamentos, como o
outono tece o céu de cinza e recolhe o dia para fazer majestosa a noite.
Preciso de remorsos para não errar de novo, preciso de
milagres para não perder a fé, preciso de Deus para me mandar dizer ao povo que
marche! Preciso de rituais. Preciso de abandonos para palmilhar o deserto da
arte, preciso de mistérios para perceber a poesia. Preciso do celibato para
valorizar o sexo na longitude dos olhos fechados, no prazer selvagem das
libertações carnais e libações espirituais. Preciso esquecer meu nome, vez em
quando, para constatar quem sou, a que vim e qual meu papel neste mundo tão
desarraigado do amor.
Preciso perder coisas valiosas para me encantar com as
pequenas, para vibrar, por exemplo, com o sorriso de um bebê que acaba de
chegar ao mundo. Preciso de distâncias para sentir saudades e enxergar o caminho
que persigo. Preciso de cortes e cicatrizes para reler continuamente o passado
e nunca voltar a ele. Preciso de ficção para mastigar os sonhos por dentro da
pele do papel. Preciso da terra ressequida e infértil para provar que sou capaz
de recomeçar do nada, como quem ficou sem coisas que possam ser nomeadas por
palavras.
Preciso de frio para roçar no outro, preciso de vazio
para me engravidar de sonhos, de insensatez para me arriscar na busca do
desconhecido, de loucura para pisar a brasa da fogueira. Preciso de clausura
para ler e ganhar liberdade. Preciso da verdade para desarmar as máscaras
solenes, pois a verdade penetra o ventre qual espada desembainhada. Mas preciso
também de inverdades, relatividades, excitação do pecado original, do engano,
do quase, do que não pôde ser meu.
Preciso de uma alegria doméstica, neutra, cega,
monótona. Uma alegria da qual se frui sozinho, quase uma opressão. Uma alegria
que me dá falta de ar e me obriga a mergulhar na profundidade para respirar. As
profundezas são estreitas. Preciso de espaço, minha vida precisa caber em mim
para eu usá-la mais dignamente. (Minha vida é mais usada pelos outros do que
por mim, porque está muito mais fora do que dentro). Eu não caibo em mim. Não
cabemos em nós. Sabemos pouco sobre tudo.
Pertencemos a uma felicidade tão primária! Beleza, dinheiro, sexo, gesto de
amor, psicotrópicos? Precisamos da vida coletiva porque individualmente a vida
dói em alta voltagem. Viver a própria vida é entrar na matéria divina e
desorganizar o mundo humano. Uma incongruência que nos condena, ou nos salva.
A felicidade é paradoxal. Mesmo Jorge L. Borges, em
toda sua genialidade, confessou: “Não fui feliz. Minha mente empenhou-se em
simétricas porfias da arte – que entretecem nadas.” Cada geração recolhe um
critério novo sobre o que é felicidade, mas em qualquer tempo e em qualquer
eternidade, ela será sempre essa luz sedenta de si mesma, sedenta do movimento
da vida para existir.
Lucilene Machado
Como diz um trecho da música "Tocando em frente" do Almir Sater em parceria com Renato Teixeira: Cada um de nós compõe a sua história
ResponderExcluirCada ser em si carrega o dom de ser capaz
E ser feliz.