A ver navios...
Sempre me vi atraída pela palavra “porto”. Sua carga
semântica ultrapassa o significado. A bíblia apresenta várias vezes a palavra
como metáfora de segurança e acolhimento. Mas não se resume a isso, um porto
está cheio de possibilidades. Pode-se partir, pode-se chegar, pode-se esperar
ou sentar-se à beira do cais para ver passar os dias. A última forma é a que
mais se ajusta ao porto de Corumbá, um lugar que, gramaticalmente, verte
silêncio.
Aqui, a palavra “porto” tem a entranha aberta para constituição
de novo sentido. Mas sei que esse porto já foi, de fato, porto, que muita gente
já estendeu os olhos perdidos e vazios para esse horizonte, ao contemplar um
navio partindo. E isso perturba o meu
espírito que teima em mergulhar nessas águas silenciadas. Sinto uma ternura
confusa... Sei que esse lugar foi cenário para muitos amores. Vastas noites de
insônia atravessadas por um rio, por um apito, por um lenço abanando.
Dói esta água, este ar, esta solidão antiga. Dói o
abraço e o não abraço. Esse barco pirata navegando no rio profundo, traindo os
ventos noturnos... essa lua enorme me espreitando como se fosse um olho de
Deus. Deus buscando na terra esse ser insignificante que sou eu, como uma espécie
de diversão divina. Tenho medo de Deus, mas isso eu não digo. Quando criança, ensinaram-me
que Deus era onisciente. Como a criança não tem as atividades abstratas
desenvolvidas, eu entendia que Deus era uma espécie de franco atirador e que me
acertaria, na primeira tentativa, cada vez que eu mentisse. Provavelmente na
testa, entre os dois olhos, segundo a precisão de sua mira e de sua ira. Mentir
devia ser o maior pecado e cada vez que era tentada a fazê-lo, lembrava-me (e
ainda me lembro) da recomendação: “Deus está vendo”. Ser perseguido por Deus
não é pouca coisa! Mas voltemos ao porto, ao casal que passeia com um cãozinho
chamado Platão. Será que sabem quem foi Platão? Será que entendem o que é o
platonismo? Possivelmente, nunca tiveram um amor platônico. Eu tive muitos.
Tenho ainda um. É recíproco, os amores platônicos sempre são. Entendemos-nos
quando nos encontramos pelas ruas, ficamos meio tontos, como esse cão girando
ao tentar morder o rabo. O silêncio cava fundo em meu corpo. Para ele crio
todas as palavras e todas falham se me aproximo. Sonho com ele pronunciando o
meu nome, sílaba por sílaba, soprando todos os fonemas com seus lábios de fogo.
Sonho com o meu nome crescendo em sua boca, minha mão conduzindo-o a lugares
desconhecidos sem tempo e sem contorno. Imagino sua voz a perguntar-me qualquer
coisa tola e mesmo sem eu responder, ele saberá o que eu quis dizer. Conhecemos
a gramática do silêncio, a paixão sem regra do que é porque não é, porque se
fosse não existiria. Daí que é urgente inventar o amor. Reinventar-me como uma
intrusa para que eu mesma me ignore e me surpreenda ao ouvi-lo chamar o meu
nome.
Mas, logo me recolho a esse porto cheio de
desesperanças, porque meu tempo já morreu nesse passado de ontem. Olho para
minhas mãos que começam a murchar. Talvez eu tenha começado a envelhecer e os
sonhos já insistem menos. Tudo vai se relativizando. Um pássaro e um navio são a
mesma coisa. Esta última frase não é minha, mas deveria ser. Sou professora de
literatura e deveria ter me dado conta disso. As palavras têm sonhos. A palavra
com o movimento dentro é capaz de se automodificar. Tenho o maior respeito
pelas palavras. Elas gostam tanto de me surpreender, que às vezes quero ser a
dona delas. Mas os humanos, esses, na maioria das vezes, não têm movimento
dentro. Humanos são estáticos. A vida inteira pode se dar em um único movimento, porque é a parte sonhadora que se
movimenta, que volta a sonhar outras e outras vezes. A vida com sonho salta adiante, desafia,
contrapõe-se. E quando o amor nos visita, ficamos cheios de pássaros por
dentro, às vezes, navios. Nossas mãos sabem dessas coisas que não entendemos,
querem tocar o indizível, o platônico ou um tempo de idas e vindas feito por
outras mãos. Era uma vez um porto... o que sobra é poesia, ou uma vocação irresistível para se sentir
vigiada por Deus.
Lucilene Machado
Lucilene...
ResponderExcluirTão bom ler você...
Acredito que Deus existe em algum lugar dentro de nós. Neste momento, Ele se manifesta na sensibilidade das suas palavras, enquanto desliza emoções do porto de Corumbá como de tantos outros que ficaram registrados... Assim vivemos, ora desejando que um pássaro voe no mesmo céu que o nosso, ora que um navio permaneça ancorado no porto e não mais se afaste do cais... seria um lenço a menos a tremular saudade, dor, adeus... Enquanto as despedidas acontecem, este amor tão próximo e tão distante de Platão, tenta nos acalentar, mas, não arranca o lenço de nossas mãos, muito menos retira a nossa dor. Melhor cuidar deste coração frágil que hoje tem desejos de ficar no cais, apenas olhando o rio manso da vida sem despedidas...
Mais uma vez, gostei muito de sobrevoar suas palavras...
Laercio
Lindíssimo. Uma crônica poética doce e triste .Parabéns grande escritora.
ResponderExcluirObrigada, queridos. É sempre bom o vosso retorno, é especial.
ResponderExcluirLucilene, queridíssima amiga!
ResponderExcluirObrigada pela doçura do texto e pelo prazer da degustação. Parabéns!
abraços,
Regiane
Obrigada Regiane. Eu é que agradeço a sua sensibilidade.
ExcluirMi querida Lucilene. Recién estrenada Lucilene.
ResponderExcluirGracias por compartir tus crónicas conmigo, por hacerme hueco en tus escritos.
Así son tus palabras, como río, como río cadente que se desliza por el cauce, por la memoria. palabras delicadas y profundas, con la pausa que requiere la reflexión y la intensidad que solo la poesía nos da. Hermosas, muy hermosas.
Cómo no va a evocar ese río cargado de camalotes; cómo no una mujer tan viva.
Ahora que el diálogo está abierto, que no cese la conversación. Un abrazo inmenso
Elias Borges Falar de solidão é sempre tarefa que o poeta faz melhor. E parece um contrassenso querer vivê-la num mundo que avança em termos tecnológicos, num momento em que é possível transmitir em tempo real tudo o que ocorre no planeta. E ainda assim, todos nós a procuramos em um momento ou outro. Porto é uma metáfora primorosa para exprimi-la Lucilene Machado. Num lugar assim tentamos voltar às origens, eremitas, em busca talvez de nossa fé, do amor que nunca deixou de ser platônico, ou mesmo para avaliar no que nos transformamos. Isso é tarefa que requer retraimento, só assim alcançamos a interiorização necessária. Bela crônica amiga.
ResponderExcluirObrigada, Elias Borges, bom ter o seu retorno. Abraços.
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