Mulheres com poderes nos olhos
Vi uma mulher passando delineador enquanto esperava no semáforo, uma imagem
que ficou grudada na parede do meu cérebro. É certo que isso não é um fato
corriqueiro, provavelmente nunca mais verei essa cena que o acaso amarrou
dentro de um instante, daí minha necessidade em contar. Embora seja esta uma
história muito simples, a palavra tem sua potência e, posso dizer que embaixo
da superfície desse fato há uma série de outros acontecimentos pululando que
talvez me exigissem muitas páginas para descrevê-los adequadamente. A realidade
concreta tem muitos matizes.
Mas a mulher do semáforo me deixou pensativa por uma semana.
Ser mulher é mesmo algo excêntrico, somos muito peculiares e muito parecidas. Naquele
momento, o pronome “eu” perdeu toda sua rigidez de filho único e voou na
condição de “nós”. Nós mulheres somos capazes de nos maquiar no retrovisor do
automóvel e isso é uma particularidade atribuída à condição feminina. Também
somente à mulher é atribuída essa necessidade de embelezar os olhos. Que o
digam as mulheres mulçumanas, que cobrem todo o rosto e pescoço, maquiam os
olhos com delineadores escuros, e neles colocam toda a força da sedução. È
provável que o nosso olhar ocidental não manifeste a mesma eficácia, mas não
podemos negar que os olhos são a parte mais expressiva do corpo humano, com ou
sem delineador.
Particularmente, creio que toda mulher deveria usar
delineador, algum dia, como um truque para desgarrar-se de si. Esvaziar-se do olhar
ideológico e se apropriar de outro que lhe recubra de fantasias. Um delineador não
deve ser usado só. Ele precisa de certas combinações como brilho nos lábios, meias
de seda, saltos e outros complementos que fazem parte do quebra-cabeça que
compõe os diários secretos de nossas emoções, ou de nossa paranoia existencial.
Mulheres de olhos desenhados parecem mais determinadas, ainda que tenham
vocação irresistível para os abismos. Cada metáfora pode ser uma existência
inteira, vivem-se todas as coisas, sem viver nenhuma. Tudo pode ser revisto,
reposto, reinventado. Mulheres destemidas sabem que as palavras não têm
significado estável. Pode-se devorar ou ser devorada nesse exercício de exalar
hormônios. Os traços escuros circundando o viés da vista e a luz a rebentar
todos os contornos.
Às vezes é muito prazeroso ser mulher. Gozar dessas
pequenas coisas que nos cabem. Contudo é preciso ter cuidado, nunca sabemos
onde os olhos podem chegar, nem qual realidade tentará emparedá-lo. É incrível
a sensação de estar disfarçada de si mesma, o olhar sem fundo delineando uma
procissão de palavras ambíguas e sedutoras. Entretanto, na duração das coisas
habita sua revelação. Não se pode abusar por muito tempo do mesmo disfarce. Sabemos
que na segunda-feira temos de retirar o véu de nossas caras maquiladas e ir à
luta porque coube a nós desatar da vida a totalidade de suas amarras. Assim,
vamos escrevendo o nosso destino sem aparar as pontas, sem perder os minutos
que escapam no trânsito, enfrentando os monstros que se levantam para amedrontar
mulheres que têm poder nos olhos.
Ser mulher é mesmo usar um disfarce de si mesma todos os dias, até nas segundas-feiras. Aprendemos isso desde muito pequenas. E isso é uma delícia.
ResponderExcluirob: eu também passo rímel quando estou parada na sinaleira, e também passo creme, as vezes base, lápis e batom. Parabéns por mais um texto. abraço grande