sexta-feira, 19 de fevereiro de 2010

Seguindo os sinais

SEGUINDO OS SINAIS

Você entra na cidade e recorda que a primeira vez que ali estivera, fora por uma paixão. Paixão esquecida na página de algum diário que você, com louca ternura, escreveu. A memória das palavras engoliu todas as emoções, angústias, frustrações ou qualquer mágoa remanescente de um romance acabado. Mas semelhante à memória de uma máquina, restara algum terminal que, ligado a um banco de dados, restituía informações já recobertas por acontecimentos recentes. Uma saudade volta a inundar-lhe o ser numa esplendorosa manhã de sol tão linda como aquela em que se conheceram. Você volta a sentir o aroma dos pães e dos cafés que resguardam uma felicidade suavemente doméstica. Cresce uma detestável nostalgia e você constata, com certa resistência da memória, que a data atual é a mesma do dia em que se conheceram. Seria uma simples coincidência? Mais que isso, você se dá conta que está na mesma rua onde jantaram pela primeira vez e assistiram a um concerto de jazz. Você fica aterrada por uma dúvida: seriam sinais? Ora, nada acontece por acaso e milhares de coisas são movidas no eixo do universo para que coincidências ocorram. Mas você corta bruscamente a hemorragia de sugestões que teima em inundar seu cérebro, fecha os olhos e encosta-se na poltrona do ônibus. Por sua própria segurança (ou insegurança) não iria dar vazão a essas enxurradas de idéias supersticiosas. Definitivamente não acreditava em sinais. Mas, e se esses toques divinos existissem? Pressentimentos? Intuições? Será que aquele homem de olhar caprichoso guardava as lembranças do passado? Provavelmente diria que sim. O que ha-via de verdadeiro nele era essa falsidade com que conduzia as relações. Uma excessiva adaptação a situações adversas, a convenções de sentimentos, ao uso de expressões por demais lisonjas que a agradava. Mas na verdade, há muito ele havia se esvaziado da substância amorosa embora carregasse uma fragilidade não muito comum aos homens. Estratégia para atrair as mulheres? Era uma imagem máscula pendurada sobre um fundo de desamparo. Contradições que lhe davam um charme peculiar. Falava de si como se inventasse uma história de fadas. E você lutou para não ser parte da ficção, de pouco valeu, acabou enredada pela tessitura das construções literárias. Você o amou na arte e na vida. Chorou uma semana. Chorou no banho. Chorou ao secar-se com a toalha. Chorou ao se olhar no espelho, nua. Chorou nua. Mas depois descobriu novas paixões, novas possibilidades, novos mundos... Agora estava ali, com uma câmera de turista a captar imagens para seu álbum, mas o que via eram partículas  esquecidas pedacinhos de cristais imperceptíveis às lentes da máquina. Toma o metrô com a alma sufocada de azul. Desce numa estação qualquer para respirar e depara-se com um mural imenso onde tudo acontece simultaneamente. As naus dos conquistadores, a inquisição, cavaleiros com bandeiras ensangüentadas e um Cristo de olhar penetrante a desvendar os seus secretos desejos. Sua viagem é aquele afresco múltiplo. Não há clareza. Está sendo guiada pelo instinto que desvia o curso de seu destino. Há um traçado superior determinando seus passos. Há uma leve suspeita de que qualquer caminho que tomar encontrará, ao final, aquele homem, mas você resiste cooperar com o destino. Entra num bar para um café e constata que o garçom tem o nome igual ao dele, não há dúvidas de que um ar de magia envolve toda a situação. Era necessário estar atenta. Ele poderia surgir a qualquer momento. Melhor usar um corretivo nos olhos, um batom na boca e espiar, discretamente, nos lugares possíveis e nos impossíveis. Mas a noite chega e nada. Você volta ao hotel e entre um telefonema e outro vê o número dele exposto em sua agenda. Passa horas imaginando encontrá-lo num acaso. No fundo, você sempre acreditou que, algum dia, o destino voltaria a unilos. Mas talvez fosse necessário cooperar. Decide ligar. É preciso arriscar, decifrar os códigos, fazer a parte que lhe cabe. Não é assim que discursam os místicos? Pega o telefone e sente um frio no estômago. Era já meia-noite... mas que importa? Fora à meia-noite que trocaram o primeiro beijo. Era uma hora mágica e nada poderia ser forte o bastante para contrariar toda aquela energia. Disca o número, já quase arrependida. Um medo de gaguejar, de perder a voz, de não saber o que dizer... cada toque é uma eternidade. Um desejo. Uma esperança. No quarto toque, uma voz feminina atende. Você, assustada, pergunta por ele. A voz responde que ele está no banho. Você silencia. A voz pergunta se você quer esperar, deixar recado, chamar no outro dia... Você desliga imediatamente e depois de organizar os pensamentos, sente uma ponta de dor. Por certo essa voz femi- nina seja um sinal claro e evidente de que você não entende nada de sinais.

terça-feira, 2 de fevereiro de 2010

BIOGRAFIA DE AMORES (texto IX)

Texto IX

          Desculpe JB, se abro o coração em praça pública. Quando me apaixono, o nível de burrice se eleva enormemente e a inteligência se fragmenta em milhares de partículas. Claro que eu nunca fui dotada de uma inteligência privilegiada, meu pensamento nunca ultrapassou as teorias já existentes, tampouco eu soube fazer uso delas nas horas devidas. Escrevo porque sou refém das palavras, preciso delas para unir os destroços de inteligência, fragmentados em letras díspares, que extrapolam as margens do meu entendimento. Escrevo para saber o que penso e o que sinto. Escrevo sobre a metade das coisas, a metade que me pertence, a metade que entendo. A outra metade talvez seja a que me explique, mas não forço a vida. Sou condescendente com o improvável. Difícil compreender? Para os carentes de fantasia esse relato é inútil. O que vou escrever, nada mais é que um recorte da realidade atravessado pelo sonho. A arte de fantasiar é a mesma para produzir milagres ou ciladas, é a mesma que veste as palavras de emoção para serem vendidas em páginas de livros. Às vezes são vendidas em tendas, aos quilos, pesadas em balanças, a preços módicos. Frases sofisticadas ou rústicas que atam como cordas até aos mais avisados. Aprendi cedo que seria difícil lidar com isso. Comecei com certa precaução. Media as palavras palmo a palmo para ver até onde elas poderiam chegar. Minhas mãos engrossaram pelo trabalho de lapidação. Espichava os vocábulos, puxava as tardes pelas beiras, moldava os sons com o fim de criar laços sinestésicos que fossem indissolúveis. Aprendi a diferenciar estruturas, a separar palavras pelo tato, a ousar nas envergaduras, mas nada foi bastante para me proteger, para me poupar dessa engenhosa armadilha inerente à realidade.
          Não sei se existe explicação lógica para justificar os atos sentimentais, mas eu sabia, eu juro que sabia que os arcos daquele sonho iriam ruir. Eu sonhava e falava, e a palavra ia ficando maior do que o sonho. E o sonho ia entrando na palavra, e a palavra ia roubando o sonho... Fiquei cativa da palavra impiedosa e do seu tom racional.
          Eu sempre soube, JB, que o meu amor era maior que o seu, e isso já era uma dor antecipada. A memória do futuro me oprimia. Cada vez que você me abraçava, ofegantemente eu respirava uma certeza, você não era meu. Cada vez que nos amávamos, mesmo com toda sincronia de corpos, a sensação de distância era abissal. Sua cautela para que a sensibilidade não fosse dominada pela inteligência, me atingia como uma faca cega diretamente no coração. Sua paixão por Kant me causava ódio. Kant nunca conheceu o amor. E você queria ser ele. Eu também quis ser ele por várias vezes. Quis ser aquele livro velho de folhas amareladas cujas palavras construíam os seus argumentos. Faria qualquer coisa para garantir a sua admiração enquanto você me impunha um silêncio devastador. Um silêncio severo, teórico. Por certo, queria me enfraquecer para que eu não sofresse tanto a dor da morte. Mas não há paliativos para a morte, nem para os simulacros da morte. O amor já havia engolido tudo.