segunda-feira, 3 de outubro de 2011

Não esquecer que por enquanto é tempo de Morangos


Não esquecer que por enquanto  é tempo de Morangos

               Emprestei esta frase do livro A hora da estrela de Clarice Lispector. Não é uma frase estratégica, dessas usadas para enganchar o leitor, tampouco foi elaborada para subordinar uma idéia nova. Simplesmente é a última frase do livro. Aquela que  pouco será entendida e da qual você se lembrará todas as vezes que comer morangos. E hoje comi morangos, vermelhos e doces, como costumam ser as frutas sazonais. Retirei as folhinhas verdes com cuidado, sentei no sofá e, enquanto comia, ouvia meu pai contar a história do papagaio de seu amigo. Foi um papagaio que apareceu no quintal, sem mais nem menos, e foi ficando, fazendo-se dono do espaço. Gracioso, atrevido e belo foi encantando o dono da casa. Pela manhã dizia bom dia, repetia adjetivos do repertório masculino, repetia nomes, cantava e foi enchendo a casa do homem de palavras. O homem sentiu-se privilegiado ao ter sido eleito por um pássaro. Ria à toa.  Comprou comida, construiu uma armação de varetas na varanda para dar guarida ao bichinho, convidou os amigos para conhecê-lo e, nesses encontros, aproveitava para exagerar nos qualificativos sobre o animal.
               Enquanto eu enchia a boca de morangos, meu pai enchia a história de poesia, de cores, de penas, de vôos. E eu pensando onde é que ia dar aquela narrativa. Talvez ele quisesse levantar algumas questões para serem discutidas posteriormente. De modo que fui enumerando mentalmente o que faria sentido para uma discussão. Comecei pela solidão do homem, o amor incondicional dos animais, a vaidade do ser humano, o orgulho, a vocação das pessoas para se apossarem do animal alheio... Mas, antes de tudo, eu deveria descobrir se aquela história era uma comédia ou uma tragédia. Os papagaios sempre ilustram as comédias, quem é que não conhece uma comediazinha cujo personagem principal é um papagaio? Mas pela gravidade na voz de meu pai, comecei a temer o futuro do papagaio. Medo e pena. O homem, o papagaio e os morangos ficaram atravessados em minha garganta. Que fim meu pai daria à história? Quero dizer, a história não era dele, era um relato verídico, e a realidade não perdoa, sabemos disso. Olhamo-nos em silêncio. Perguntei a meu pai como o papagaio fora morto. Eletrocutado no fio de alta tensão, disse sem pestanejar. Ficou dependurado por uma patinha. Grudado mesmo. O homem chamou o bombeiro para retirá-lo dali. O bombeiro não veio. Chamou os amigos para tentar desfazer aquela visão grotesca bem na porta da casa, mas ninguém quis se expor ao perigo da alta tensão. Muita gente deu palpites, mas solução, nenhuma. E o corpo do que era um papagaio seguiu esticado no fio, na frase, na história.
               Corri para o banheiro com a boca cheia de morangos. Não quis comentar nada. Queria vomitar aquela história infame, mas ela já estava arquivada no meu cérebro, juntinha com a história da Macabea. Devia ser por conta dos morangos. O papagaio, por um instante, era a Macabea. Desprovido de conhecimento, indefeso, apenas repetia o gesto dos outros, as ideias dos outros, e, como ela, gostava de estar em algum canto do mundo, de onde pudesse ver o tempo passar. Macabea, dona de uma alma rala, morreu esmagada por um carro depois de uma cartomante lhe encher a vida de palavras. Ficou caída sobre os paralelepípedos sujos em posição fetal, numa tentativa de abraçar-se a si mesma. Morreu deixando uma vida cheia de promessas que não foram cumpridas. Uma morte que poderia ser evitada. Clarice não quis. Desenrolou oito páginas para a luta muda da personagem que tenta viver. Mas vida e morte ficam tão relativizadas que não sabemos se Macabea está viva ou morta. Na verdade, Clarice nos trai, nos conduz por caminhos oblíquos, nos fragiliza, nos leva para mares nunca dantes navegados, nos faz atravessar a linha limite entre vida e morte como se fôssemos atravessar uma rua e, ironiza, enquanto narradora, dizendo que morre várias vezes só para experimentar a ressurreição.  Com pequenas sutilezas, tenta nos jogar para a morte: “os que me lerem, assim, levem um soco no estômago para ver se é bom. A vida é um soco no estômago.”
               Começo a raciocinar, dentro da lógica que me falta, que a literatura é muito perversa. Capaz de manipular a vida e a morte. E até uma idéia furtiva acende detrás do meu pensamento, sinalizando que eu também sou culpada pela morte do papagaio.  Por enquanto, só posso dizer  que ainda é tempo de morangos.

Lucilene Machado