sexta-feira, 20 de dezembro de 2013



De ausência e  silêncios

            O mundo segue como algo estabelecido e petrificado pelos donos das cidades. Bobinas de ruas se desenovelando diante de nomes antigos, girando conforme suas articulações. Paro em uma rua abarrotada de árvores chamada Avenida do Poeta. Há muitos poetas nesta cidade, mas não é de poesia que quero falar, embora ela esteja explodindo infinitamente cristalina neste dia de sol. Necessito, sim, aproximar-me de mim, romper com tudo o que me separa do próprio âmago... Deixei-me ir tão longe que quase não sei quem eu sou. Falo de mim sem nenhuma garantia de saber o que digo, cedo à fraude fácil de ser a pessoa que não sou. A vida nos facilita sermos superficiais. Os resultados, a aparência, as opiniões, a história, a liberdade fingida com a qual me movo por entre ruas.
            O “eu” poderia ser outra coisa que não corpo e alma? O corpo reclama, a alma entristece e uma certeza insiste que podemos ser aquilo que somos, verdadeiramente, o problema é que não sabemos o que de fato somos. Não conseguimos extrapolar os níveis subliminares da velha psicologia. Por outro lado, não conseguimos impedir que forças desconhecidas avancem em busca do direito de ser. Uma busca superior a nós mesmos enquanto indivíduos: sermos mais do que homo sapiens, em seu comportamento standard, ir além da paixão, ciúmes ou piedade, libertarmo-nos dos rótulos que a sociedade empreendeu para nós.
            Quem não gostaria de vomitar parte de si. Vomitar gestos mecânicos, a consciência purgativa, a formação cristão-judaica  a condenar, a dor grudada na parede do estômago, a náusea provocada por um movimento de rotação fatigante, a sensação de ser coagido, o saber  que não se resigna e esbofeteia a nossa cara, além dessa propaganda luminosa, plantada a minha frente, a prever o óbvio: a vida é um engano pelo prisma da razão.
            Às vezes me convenço de que a estupidez está entre a palavra e o seu significado, muitas nomenclaturas para um mesmo desconcerto. Um desenho pode ter mais sentido do que um romance. Ou, estou tentando novamente me incluir nas categorias tranquilizadoras, na zona de conforto? Romance exige personagens, relacionamentos, separações, conflitos, morte. Penso nas  hierarquias, no estético, no ético, no religioso... Um homem amando apaixonadamente uma mulher de inteligência duvidosa. Um autor transgredindo o sexto mandamento, rasgando papéis em pedacinhos, jogando sobre o tapete da sala, sujando tudo com restos de frases sem significados,  a soar libidinosamente no ar. Há muitas coisas no mundo precisando de nomes, e há outras que mesmo possuindo nomes, jamais serão escritas.
            Eu ainda me precipito a narrar esses estados de assombro. E às vezes sou assombrada por seres de carne e ossos. “Um pouco de verdade e uma aspirina”  pediria Álvaro de Campos. Eu suplico a Deus que me livre do deus cheio de verdades humanamente estabelecidas. Continuo aqui com minhas fugazes palavras, presas por alfinetes em quadro de cortiça, e seus respectivos silêncios, que é a vertigem em seu estado mais puro. Amanhã serei outra. 
                                                               Lucilene Machado

segunda-feira, 2 de setembro de 2013





CANTIGAS À TOA PARA UM PASSARINHO

         Não sou especialista na obra de Manoel de Barros, tampouco sou uma leitora crítica. Tenho sido, desde sempre, uma leitora vítima, cúmplice e  fascinada pela  lírica capaz de abarcar os desperdícios, os “inutensílios” os “nadifúndios” e transformá-los num desbanalizado pássaro em vôo livre tirado da manga metafórica de seus truques literários. E como não me parece prudente tentar desmontar criticamente os mecanismos da magia, contento-me em observar, com cúmplice fascínio, de que encantamento se trata cada quadro, porque há sempre o perigo do pássaro liberto transformar-se novamente em nada se a magia for quebrada pela explicação da magia. Daí que meu papel é não menos do que tirar da manga os impertinentes pássaros encantados de Manoel de Barros. Pássaros que mastigam palavras que não há no idioma e são capazes de, durante um vôo, botar um ponto final em uma frase. A poesia de Barros é isso, é quase isso. É quando o dia dorme, por exemplo, ao lado de um pardal.
         Mas não tente entender  esses pássaros. É bobagem. Para entender os pássaros, Barros canta. Conhece todos os assobios. Fez um compêndio para partilhar sua ignorância com andorinhas, anhumas, garças, sabiás, beija-flores-de-rodas-vermelhas e até um pássaro esquisito chamado João-Ninguém que faz poleiro na cabeça de Bernardo. Fez um Concerto a céu aberto para solos de aves, fez Cantigas para um passarinho à toa e segue fazendo uso dos pássaros quando quer encontrar o azul. Voar é um dos movimentos prediletos de sua poesia. Vejo os pássaros passeando de poema em poema. Não se pode apreendê-los, tampouco classificá-los num dicionário de língua. É inútil apontar um significado. É muito mais gratificante soletrá-lo. Invocá-lo, boca a boca, ouvido a ouvido, sem interferências, arbitrário, percebendo sua vibração sonora ou seu grafismo. Pássaro não é um sentido, é uma imagem sonora. São pios enramados de sonhos. É o soar de um sino para se ajoelhar. Vocábulo que põe à solta, sobre a letra do mundo, uma energia virgem e religiosa, uma música primeva, que é como sua alma ondulante e superior.
         O vôo do seu discurso tem linhas, imagens, iluminuras. O vôo de seu discurso tem uma caligrafia minúscula que parece um bando de andorinhas voando no papel. Todas as letras são sinônimas e voam tortas pelas ruas do vento. Depois dormem enluaradas como as coisas que não têm bocas. Comunicando-se apenas por infusão, por aderências, por incrustações...  Está pronta a malha de Barros, onde entretece, entristece e tece o rosto de seus pensamentos. Com fios de primavera,  tece no céu azul, o azul dos pássaros. Atravessa o tempo em um arco-íris, recolhe a escureza e faz do espaço um texto oculto. Um texto que tem o aroma e a fluidez da cor, o pólen que se espalha pelas planícies férteis das terras pantaneiras e reaparece relvando entre as pedras, na madrugada de todos os matagais.
         Barros planta palavras que deixam na mão uma textura quase verde, um quase poema a suicidar a vida na longitude de sua lógica. São necessárias novas fecundações concebidas no prazer selvagem das libertações e libações humanas, muito além de todos os cânones literários, de todos os cânones limítrofes. Sempre o ovo escondido à espera de rebentar uma despalavra no mapa dos dicionários só para vê-la viajar em seus corpos fugidios pelos longos percursos da leitura.
          Manoel de Barros é  um texto que o Pantanal inventou. Deu-se ao acaso. Tem óculos, sorriso honesto, cabelos fartos e uma alma que sofre de Deus. A pele é o que há de mais bonito em seu corpo. Vai imitando o céu como pode. Uma pele ensimesmada que veste o espírito desnudo. O Pantanal tem uma escrita genial, e Barros é sua ficção. E quando o Pantanal começa a escrever é um escorrer de água em primeira pessoa que vai abrindo os veios tintos da terra. Rebenta e suporta, inunda e aprofunda. Esparge-se ao longe do papel- planície frases silenciosas e impossíveis. Crescem jacintos sobre as palavras e correm águas agradecidas sobre latas... Os versos rastejam como lesmas em busca de suas casas de caracóis, e com  corpos já cansados descansam sobre o poema esperando Deus inaugurar suas eternidades.
         Ao espelho, Manoel é peixe. Semântico. Rasga o tempo ao longo do rio e do vendaval. Inunda vilas. Alaga terrenos e mastiga o sono por dentro da pele. Depois da catarse, recomeça do nada, como quem ficou sem coisas nomeáveis pra dizer. Não se podem prever seus repentinos argumentos, os testamentos que suportam a criatividade de suas memórias inventadas. Sobre restos e rastros de uma longa história conta como seria o mundo imaginário, se ele fosse imaginário. Manoel renasce cada dia, ávido e com ganas de soletrar o sonho dentro de sua geografia meticulosa. Enquanto a manhã desliza pela garganta do dia, há um  novo corpo por se construir. Célula a célula, letra a letra. A cumplicidade clandestina com a palavra a cumprir o itinerante da poesia. A inexplicável arte de emoldurar o nada.
         Manoel é o pássaro  inquieto rabiscando as sílabas do pantanal. É o soletrar de uma travessia sem fim. Acumula palavras pra se distrair e se realiza no rascunho da invenção, nos discursos de uma língua inventada pelo movimento das águas. Todas as manhãs, ao despertar, entrega seu canto ao infinito, e a poesia, no corpo de uma gaivota,  voa fora da asa.
                                          
                                                                           Lucilene Machado



sábado, 8 de junho de 2013

Madalena, as prostitutas e outras verdades ao rés do chão






Madalena, as prostitutas e outras verdades ao rés do chão



Há verdades que não cabem na fala. Tampouco cabem na escrita. Há verdades que circulamos a lápis para apagarmos na hora de um enfrentamento. Às vezes damos volta, mas nunca chegamos ao núcleo, ao desdobramento da questão, porque antes disso um redemoinho mistura as coisas, mistura os gestos com os interesses, as letras com a areia, o sal com as lágrimas, a alma com o corpo... e a verdade é substituída por outra palavra criada para comunicar os pensamentos que assobiam toadas vindas de longe.

Ainda bem que as nossas verdades não se acomodam na cara. Seria fatal. Elas se acomodam em nossa página em branco. Tenho uma folha em branco onde deposito meus desejos mais secretos, meu parecer sobre as horas em trânsito, o pensamento do outro que eu espreito, a palavra alada que cruza minha incerteza, meu ser elástico, mola, trepidação e tudo que reverbera no tempo.

Nunca abandono minha folha em branco. Também nunca escrevo nela. Qualquer olhar, qualquer suspiro, qualquer eco que se perde no abismo são pistas, são sinais andarilhos que eu recolho na transparência dos sentidos para saber que lado do vento seguir. Minha folha em branco é minha filosofia, meu mapa para fugir de mim. Fugir do maniqueísmo  que me ensinaram.

Aprendi cedo que as coisas eram divididas entre saber e não saber, entre verdade e mentira, certo e errado e que os impuros seriam punidos por Deus. Os puros, em contrapartida, herdariam o paraíso. Foi o meu primeiro conflito existencial. Não queria  nenhum paraíso, eu já possuía o meu. Queria mesmo era brincar no cafezal que avizinhava a nossa casa.  Queria correr com as araras e papagaios, encontrar a casa das corujas, imitar o quero-quero que pousava desconfiado sobre a cerca de balaustra, alimentar os macacos que torciam um sorriso canhestro para os possíveis passantes.

Foi por esse paraíso particular que empunhei espada contra a miséria humana que nos vem tentar.  Contudo, fui expulsa. Não por Deus, mas pelo progresso que enganou todas as outras palavras e foi empedrando o terreno, criando esgotos e lambendo a sombra das árvores. Fiquei engasgada com uma verdade que foi se desfazendo liquidamente garganta adentro. Tinha gosto amargo e destruiu, com um só golpe, tudo o que eu havia aprendido. Desde então, venho fazendo ajustes nos significados, propondo pactos, conversando com Cioran, Clarice, Rosa, Yourcenar... esta última me pôs perplexa. Deixou entrever Madalena de um modo muito diferente da bíblia. Pedi ajuda a um amigo que estuda o assunto, e ele me disse que Madalena nunca foi prostituta.

  Fiquei esbaforida. Desculpem o termo torpe num texto que se pretende poético. Mas foi assim que me senti. Acompanhei sua argumentação com o desconforto impassível de quem já esteve frente a um lunático. Busquei as vozes dos evangelhos. Segui as referências, abri e fechei a bíblia, e nada. Maria Madalena não foi prostituta?! Busquei e ainda hei de buscar, porque no fundo gostaria que ela fosse. Gostaria que todas as prostitutas se sentissem amadas por meio dela, e pudessem retribuir  o amor, se não pela voz, pelo silêncio das pupilas, pela epiderme e que aquela ferida que arde dentro  recebesse um sopro de doçura.

As prostitutas ficaram órfãs. Eu fiquei remoendo o silêncio eclesiástico de quem encontrou uma verdade. As palavras bateram-se em retirada. Olhei pela janela e vi, por detrás do prédio, um paraíso com pássaros, borboletas, libélulas sobrevoando o pântano azul. Tive a sensação que deveria ir correndo para lá, mas não fui. Fechei a janela como se uma borboleta fechasse as asas, minha garganta engoliu em seco o conceito de paraíso, esgarçando  vertigens dentro do meu ser povoado pelo frio do mundo.



                                                                                              Lucilene Machado.




segunda-feira, 29 de abril de 2013

ENCONTRO






ENCONTRO



            O moço chegou sem nenhuma referência. Provavelmente veio de um lugar de coisas acontecidas, de palavras perdidas,  relações esgotadas,  mentiras transbordadas,  verdades incompreendidas... Não me recordo se era quarta ou quinta-feira, apenas que era dia de percorrer longas distâncias dentro de mim. Não havia nenhuma comemoração. Ou havia?  Talvez houvesse alguma vibração positiva brindando aquela casualidade, embora encontros não ocorram ao acaso. Muitas coisas no universo são movidas para que duas pessoas estejam ao mesmo tempo em um mesmo lugar. Mas optamos pela indiferença por uma única razão: somos tolos! Ele com uma tolice inata aos homens bonitos. Eu, com uma tolice inata às mulheres tímidas. Neste caso, brindamos com silêncio o que fingimos não reconhecer.
            Nossas órbitas oculares, essas sim se reconheceram, as pupilas fixas deixaram escorrer o olhar de desejo. Uma música imaginária circulava nossos corpos no centro de  qualquer futuro. Tentei disfarçar, várias vezes. O moço também. Mãos na mesa, mãos no queixo, mãos no joelho. Meu sangue fazia mil curvas, como um rio subterrâneo, em movimento, precisando desaguar. Desejaríamos ambos nos entregar a uma vontade maior que a nossa? Não ouvi respostas, apenas as pulsações de um invisível relógio a esmagar o tempo dentro de suas ferragens.
            Ele olhou-me de frente como se parasse de respirar, como se estivesse diante de um deserto, diante do mar, debaixo de uma árvore no meio do campo,  debaixo da chuva, debaixo da neve, como se fôssemos uma única imagem, pronta a ser copiada. Um silêncio brando nos envolveu como se fôssemos únicos no recinto. Nada na vida me pareceu mais linguagem do que o silêncio. O que nos fez desprezar as palavras. Talvez fossem excedentes. Talvez prematuras. Talvez atrevidas. Quem é capaz de traçar, antecipadamente, um caminho por onde percorrerão as palavras? O toque, o toque poderia ser menos comprometedor. Mas também não nos tocamos. Desejei a palidez de suas mãos de mármore. Quis acariciar a artéria azul saltada pelo sangue vindo do coração, descansar minha cabeça nas palmas abertas a escancarar as linhas  que compunham o seu destino.
            O tilintar dos talheres arrancou-me de minha caverna.  E o moço? Bem, o moço se foi. Discretamente, como chegou. Levou o sonho, a esperança, o prazer...   já seria a hora de envilecermos? 
            Ele tinha de ir. E eu fiquei ali, na mesma posição, olhando para as costas do moço e pensando como teria sido se ele ficasse.  Se seria bom, se ele escrevia bem, se gostava de tomar chá pela madrugada...  Fiquei olhando para o moço e ele indo embora... Nem fiquei sabendo se ele lia Pablo Neruda, se gostava de  Pessoa....  se já havia chorado por amor, se tinha algum sinal de infância... Por que aquele cuidado excessivo em apagar as pegadas, em não deixar pistas? Por que a precaução em se  manter desconhecido?
            Fiquei pensando nas coisas que a gente perde, sem saber o que está perdendo, nas pequenas conspirações do destino e na dolorida hora de olhar alguém partindo e desejar profundamente que ele fique. Talvez a poesia explique. Diz Neruda: "foi só uma hora longa como uma veia, e entre o ácido e a paciência do tempo enrugado, transcorremos, separando as sílabas do medo e a ternura”.

 Lucilene Machado