terça-feira, 8 de dezembro de 2015





O mar, Deus e as mulheres

            Acordo e vejo o mar lambendo o horizonte. Um mar imenso se oferecendo a mim desde as suas profundezas. É certo que não temos muita intimidade, ainda tenho receio dessa profundidade desmedida e traiçoeira. Uma sedução silenciosa que me molha por dentro, ainda que eu mantenha essa distância de vidraça. Creio que o mar é um porta-voz impessoal de Deus. Ora calmo e sereno, ora enfurecido. Uma dualidade que me amedronta. Quando criança, tive muito medo de Deus, qualquer transgressão geraria castigo e castigo era uma palavra esmagadora, cujo significado era totalmente desconhecido. O castigo poderia ser imediato, o que não deixa de ser a forma mais positiva de punição, o contrário seria esperar lentamente a hora de ele chegar, e isso não previa lugar, nem hora, apenas que fatalmente viria. Construí um Deus brutalmente humano, carregado de vingança, a partir da regra dos outros, religião dos outros, do pensamento dos outros. Um Deus que se movia por repetições de palavras e muita insistência. Uma lógica cartesiana, a mesma com a qual interpretamos o mar e seus abismos.
            Segundo Clarice, o mar é a mais ininteligível das existências não humanas e a mulher a mais ininteligível dos seres humanos. Uma mulher e o mar é o encontro de dois mistérios. Uma mulher, o mar e Deus são três mistérios e uma coragem secreta. A coragem de ser fêmea e correr todos os riscos, inclusive o de ser castigada. Um perigo antigo que sobrevém a qualquer hora, às vezes pela madrugada quando dormem os homens, dormem as crianças, dormem as coisas um sono fácil e profundo.
            Eu não tenho sono fácil, nem profundo. Os pensamentos fazem espirais pela escuridão do quarto, depois escorrem pelo corpo e se transformam em sonhos, muitos sonhos que alcançam as largas manhãs azuis. O dia começa devagar e cúmplice. Gente de todas as idades caminha pela areia. Mulheres com seus bebês, mulheres com grandes barrigas, mulheres paradas olhando o mar, enquanto a vida passa por esse corredor estreito como um vento ligeiro. A poesia se arma em minha defesa, como um escudo. A fugacidade das coisas nos deixa melancólico, é preciso amor para perdurar. Amo de duas maneiras, pensando e vivendo. Mas hoje estou desencantada do amor, só hoje, porque amanhã me esquecerei dos espinhos que ele deixa na carne e me lançarei nesse mar traiçoeiro com toda a agudez dos meus instintos. Porque só o amor me faz sentir honesta e sensata. Só o amor me faz sentir o sangue queimar embaixo da pele, sem culpa. Mas há sempre uma causa e uma consequência. Se não sabemos para onde vamos, fatalmente cairemos num abismo, e o amor se torna um vazio indecifrável em que as certezas já não têm nenhuma utilidade. O amor tem também seu dualismo, é o que se espera e o que não se espera, encantamento e decepção.

            A imprevisível meteorologia da paixão cobre o sol a qualquer momento e já não sabemos em qual estação estamos. Só o mar e a  ausência anunciando, talvez, o velho castigo de Deus. 
                                                 Lucilene Machado