quarta-feira, 12 de novembro de 2014

AMANTE





Bruno Steinbach “Os Beduínos”. Acrílica/duratex, 121,5 x 136,5 cm, 1998, Mossoró, Rio Grande do Norte, Brasil. Coleção: Isaura Amélia Rosado. Catálogo 70.

 
Amante
Hoje o céu azulejou o dia, logo cedo, com um azul tropical. A poesia vem sagrada, cravada nas pupilas de meus olhos. Novembro se propaga por meu campo de visão. Experimento a nostalgia de todas as coisas vividas, da jornada de cada dia, dura e linda como um diamante. Agarro esse instante para pensar um verso sobre liberdade e escrever num papel que está no  pensamento. O amor, o ar, as ideias, os modos de ver... ah, esse meu delírio de existir. Esse meu modo de amar literariamente, existencialmente, loucamente, de imitar Neruda e hacer una canción desesperada... esse meu modo retrógado de pensar que ser amante é a forma mais revolucionária de amar. Imediata, urgente, despida. Não é. A poesia continua subjacente, além de mim, apesar de mim. Um amor com vida oculta, cheio de meandros, de ar, de palavras... e tudo  se dá da mesma maneira, o que encontro me encontra e ponto. As palavras perdem a carga semântica para caberem no poema, para caberem na vida. O caderno aberto, o lápis apontado e o signo exposto, feito roupa no varal. Palavra seguida por palavra e um cabo forte torcendo o rumo de tudo. A vida vai ganhando estranhos ritos. Não há necessidade de lisonjas, a pressa lambe as horas ante o futuro silencioso, amanhã não sei se existiremos. Se ao menos as horas tivessem garras para frear o tempo. Não têm. Apenas concordam com o que sinto. Concordam com o que não deveriam concordar, porque para as horas tudo é como é, e assim que é. Eu agradeço com um sorriso e recebo outro que me deixa mais alta, próxima de qualquer paraíso e um olhar refletindo a certeza de que o céu é longe como a ideia de nunca se chegar a um porto. O silêncio que me embala é o medo de naufragar. Não sei se a vida é um bem-me-quer ou um mal-me-quer. Ou mesmo se é uma tentativa de acontecer na vida do outro como um milagre. Um milagre nunca é esquecido. É um pedaço de tempo guardado no infinito. E eu pensando tudo e escrevendo na parede do cérebro. De repente, alguém sacode essa hora dupla como se sacode um lençol e, mesclado, o pó da dupla realidade cai sobre o chão. Mãos desiludidas acenam um adeus. Os dias ficarão mais longos, as noites também. Olho para direita e para esquerda e sinto o corpo caminhando pelas ruas reais. Em minha frente, o horizonte fechando os olhos. Amanhã será um novo dia.
Lucilene Machado