A arte de
perder
Queria
lhe dizer que li o poema da Elizabeth Bishop “A arte de perder” e que perder
não é nenhum mistério. As coisas mais significativas contêm em si esse risco
determinante. Perde-se pessoas, perde-se objetos, perde-se lugares, perde-se a
chave para muitas coisas, mas isso não muda nada, a vida segue impassível.
Confesso
que foi impossível não refletir sobre as minhas perdas. As grandes, as
pequenas, as que se perdem gradativamente, as que me são tiradas a solavancos
e, muitas vezes me derrubam; as perdas que estão tatuadas em minha pele e todo
mundo vê, as que estão ocultas e doem paulatinamente e as que estão escritas na
parede da memória e amanhecem comigo, diariamente, do mesmo modo como foram
concebidas.
Bishop
diz que perdeu duas cidades lindas e um império que era seu. Perdeu dois rios e
mais um continente, mas não é nada sério. Não é mesmo! No entanto, sofri com suas
perdas, porque são parecidas com as minhas, com as que compõem a memória da
minha vida partida. Não perdi um rio, mas perdi, por exemplo, minha alma, como
um remo que é derrubado em águas profundas. Perdi o rumo de um destino que era
feliz. Perdi o sonho. Perdi a vontade. Perdi amizades. Perdi o amor – várias
vezes. Perdi tudo – algumas vezes. Mas, que importa perder tudo se tudo é nada?
Perdi raios de sol, perdi nuvens que se foram com o vento, perdi brisas, luas,
estações inteiras! Perdi o rosto que era meu, perdi o olhar, perdi a lucidez, o
silêncio, a timidez e fiquei entupida de nada.
Perdi
a geração a qual pertenço e fiquei perdida no tempo e espaço alheios. Perdi a
fé, a religião, a confissão de uma vida que não serve, perdi a certeza, a
esperança... perdi o verbo, o adjetivo, frases literárias absolutamente
humanas; perdi a percepção para diferenciar o que realmente quero e o que estou
tentando querer. Fui ficando tão esvaziada que quando você chegou, eu não soube
o que fazer com a sua presença. Tampouco fugi porque não suportaria a vergonha
de me acovardar. Assisti incógnita à partida da minha resistência. Você estava
ali, tão completamente ali, que eu soube, imediatamente, que no momento
seguinte você iria me tocar. Foi tão imediato, tão agora, tão já, não havia
tempo para estratégias. Intuitivamente, tínhamos consciência que deveríamos
fazer um movimento perfeito, tanto na chegada quanto na despedida, para não
provocar nenhuma dor, nenhuma ferida, nenhum gosto amargo na boca. Fizemos
tudo, acertadamente, como se conhecêssemos os manuais de aproximação e
afastamento. Talvez eu tenha demonstrado um pouco de ansiedade, demonstrado,
ainda que indiretamente, minha falta de jeito, de prática e que o prazer da
aventura me era levemente desconfortante. Demonstramos grandes habilidades na
arte de perder e, inclusive, sabemos que essa saudade inexplicável, qualquer
dia desses, vamos perder.
Apesar
da demonstração de nossa competência, nem sempre é fácil manejar essa arte. Ela
passa pelos consultórios psicanalíticos ou, pela literatura. Há também outras
opções menos indicadas como o álcool, as drogas compradas em farmácias ou mesmo
os tóxicos encontrados nos becos urbanos. Eu fico com a literatura e tento
transformar em arte essa coisa nenhuma que me empurra para o sol, para o mar,
para uma nova estrada, um novo texto e, de repente, no meio de uma frase ou de
um movimento, me surpreendo pensando algo
como: perder é só um verbo, intransitivo.
Lucilene Machado