sexta-feira, 31 de outubro de 2014





A arte de perder



            Queria lhe dizer que li o poema da Elizabeth Bishop “A arte de perder” e que perder não é nenhum mistério. As coisas mais significativas contêm em si esse risco determinante. Perde-se pessoas, perde-se objetos, perde-se lugares, perde-se a chave para muitas coisas, mas isso não muda nada, a vida segue impassível.

            Confesso que foi impossível não refletir sobre as minhas perdas. As grandes, as pequenas, as que se perdem gradativamente, as que me são tiradas a solavancos e, muitas vezes me derrubam; as perdas que estão tatuadas em minha pele e todo mundo vê, as que estão ocultas e doem paulatinamente e as que estão escritas na parede da memória e amanhecem comigo, diariamente, do mesmo modo como foram concebidas.

            Bishop diz que perdeu duas cidades lindas e um império que era seu. Perdeu dois rios e mais um continente, mas não é nada sério. Não é mesmo! No entanto, sofri com suas perdas, porque são parecidas com as minhas, com as que compõem a memória da minha vida partida. Não perdi um rio, mas perdi, por exemplo, minha alma, como um remo que é derrubado em águas profundas. Perdi o rumo de um destino que era feliz. Perdi o sonho. Perdi a vontade. Perdi amizades. Perdi o amor – várias vezes. Perdi tudo – algumas vezes. Mas, que importa perder tudo se tudo é nada? Perdi raios de sol, perdi nuvens que se foram com o vento, perdi brisas, luas, estações inteiras! Perdi o rosto que era meu, perdi o olhar, perdi a lucidez, o silêncio, a timidez e fiquei entupida de nada.

            Perdi a geração a qual pertenço e fiquei perdida no tempo e espaço alheios. Perdi a fé, a religião, a confissão de uma vida que não serve, perdi a certeza, a esperança... perdi o verbo, o adjetivo, frases literárias absolutamente humanas; perdi a percepção para diferenciar o que realmente quero e o que estou tentando querer. Fui ficando tão esvaziada que quando você chegou, eu não soube o que fazer com a sua presença. Tampouco fugi porque não suportaria a vergonha de me acovardar. Assisti incógnita à partida da minha resistência. Você estava ali, tão completamente ali, que eu soube, imediatamente, que no momento seguinte você iria me tocar. Foi tão imediato, tão agora, tão já, não havia tempo para estratégias. Intuitivamente, tínhamos consciência que deveríamos fazer um movimento perfeito, tanto na chegada quanto na despedida, para não provocar nenhuma dor, nenhuma ferida, nenhum gosto amargo na boca. Fizemos tudo, acertadamente, como se conhecêssemos os manuais de aproximação e afastamento. Talvez eu tenha demonstrado um pouco de ansiedade, demonstrado, ainda que indiretamente, minha falta de jeito, de prática e que o prazer da aventura me era levemente desconfortante. Demonstramos grandes habilidades na arte de perder e, inclusive, sabemos que essa saudade inexplicável, qualquer dia desses, vamos perder.

            Apesar da demonstração de nossa competência, nem sempre é fácil manejar essa arte. Ela passa pelos consultórios psicanalíticos ou, pela literatura. Há também outras opções menos indicadas como o álcool, as drogas compradas em farmácias ou mesmo os tóxicos encontrados nos becos urbanos. Eu fico com a literatura e tento transformar em arte essa coisa nenhuma que me empurra para o sol, para o mar, para uma nova estrada, um novo texto e, de repente, no meio de uma frase ou de um movimento, me surpreendo pensando algo  como: perder é só um verbo, intransitivo.



Lucilene Machado

sábado, 4 de outubro de 2014




Imagem: tecnologia do futuro.blogspot.com 


Hiper-realidade

            Observo a vida pelas redes sociais. Pessoas buscando significados inquietantes para assegurarem-se de que estão vivas, de que não são peças de um simulacro, de uma grande irrealidade que ousa parecer real. Para justificarem, pensam, riem, se autointerpretam, se autoenganam e postam sua própria imagem em busca de uma cotação no mercado do marketing pessoal. Ou seria mercado da estética?
            Todas as palavras relacionadas com a imagem são bem conceituadas nos espaços virtuais. Elas chovem, desabam em avalanches, jorram no espaço e pululam, aos nossos olhos, como bolhas artificiais. Palavras terrivelmente gastas e usadas, esgotadas pelas milhares de vezes que são empregadas. Incontáveis repetições das mesmas piadas, mesmas expressões, mesmos floreios, mesmas metáforas. Pior é quando vejo minhas palavras reproduzindo tais coisas. Eu que defendo a ideia do esvaziamento dos vocábulos gastos e  a ideia de um espírito purificado, limpo da escória do palavreado igual, na primeira oportunidade, repito os mesmos vícios. É a hora de emburrecermos?
             Os rostos das mulheres manipulados por lentes especiais, os olhos dos homens buscando a falsa perfeição, os desejos massificados cortando a carne como lâmina de barbear. Vale mais um retrato bem feito do que um texto bem escrito. Assuntos de todos os níveis necessitam de cores, desenhos, gravuras,  fotos  capazes de exprimir o que já está exposto. A ideia de uma profundeza humana oculta me parece impossível, já que os ruídos da superficialidade são extremamente tranquilizadores.
            Acrescento minhas palavras, aumento com algum murmúrio o imenso barulho das vozes. Marco algumas linhas para nada, para dizer, talvez, que estou viva, que quero ser lembrada, amada, reconhecida e constatar minha cotação no mercado da egolatria. Mostro meus algarismos inúteis, preencho espaços, construo memórias e acrescento os meus amigos neste enredo ruidoso que se movimenta conforme a vida real. Homens e mulheres de todas as idades, de todos os tipos, um dia, sem se dar conta, se autoplagiaram, se autoinvocaram e aqui sobrevivem como cópias de si mesmo.
            Olho para a tela do computador e perco as palavras. Algumas desaparecem instantaneamente. Livro, gato, flores... acidente de carro, assalto, duas ou três palavras incompreensíveis e outras enormes como IDEOLOGIA, INFÂNCIA, EDUCAÇAO... Todas serão apagadas nos minutos seguintes. Vejo o céu por fotografia, vejo os pássaros planando as nuvens em círculos e se confundindo com o plano das ideias, não sei. Os vídeos de lugares distantes me fascinam pelas diferenças. Só me enfadam quando se repetem paulatinamente. Todos os nomes que têm Sorrilla são meus parentes. Mas eu não tenho. E se tivesse, teria sido ainda assim eu mesma. Os nomes não modificam as pessoas. Milhares inventaram outros nomes nas redes. Eu inventei sonhos e um nome que dorme todos os dias no céu da minha boca. Às vezes, as letras se derramam virtualmente por minha garganta, sem qualquer explicação. A gente não consegue explicar tudo que acontece por dentro, nem tudo o que acontece no espaço cibernético tão falso e tão real. Ainda não é possível desvendar esses segredos rápidos, essas aventuras, esses sinais pintados nas paredes pré-históricas digitais que serão, um dia, estudados como modelos arcaicos dessa nossa geração cativa da solidão.
                    Lucilene Machado