De tintas e cores
Estou
pintando a casa e isso não é ficção. Pintei as paredes principais de um branco
fosco para lembrar que a vida necessita ser recriada todos os dias mesmo com a
ausência das cores. Pintei uma parede, pequenina, de vermelho. Um atrevimento,
eu que sou tão contida... Talvez para lembrar que a paixão é sempre o ponto de
partida para qualquer recomeço.
Enquanto
os pincéis sobem, descem, atravessam corredores vazios, vou me medindo nas
paredes frias. Se eu fosse artista plástica ia me pintar em cores, feito Frida
Kalo. Mas sou apenas uma mulher que observa os pincéis rasparem as costas nas paredes e apagar aquilo que o pano molhado não conseguiu. Há manchas que precisam ser encobertas, esmaltadas
sob várias camadas, como os sentimentos que esmagamos nas paredes do espaço-tempo.
O
pintor vê as marcas, enquanto penso coisas pelos ângulos adjacentes do nada.
Talvez eu escreva, aproveite a pintura para refletir a vida. Ainda não sei
como, a vida é porosa em sua acomodação, dá muitas voltas, e o branco não
suporta tanto desamparo. A vida precisa de azuis, de amarelos, de rosas, de
cores encarnadas, disformes, desbotadas... Precisa de tardes verdes estiradas
sobre o dorso do horizonte, suando suas tinturas sobre o mar de sargaços.
Aqui
em casa só preciso desse branco líquido
e do vermelho despencando na sala sobre o vazio de Deus. Todos os vazios são de
Deus. Deus mora nesse vazio seco que reside em mim. Às vezes, como hoje, água
nenhuma amortece. Fabrico sombras externas para disfarçar o deserto de dentro.
O que me refrigera é a arte. A arte é esse luxo que está perdendo o glamour.
Tudo que eu quero mostrar com ela é silencioso. Não sofro o bombardeio das
horas em trânsito. Só estremeço diante da palavra anunciada. A palavra me
penetra, me corrói. Não sei me defender dela, nem sequer da minha. Daí o meu
refúgio nos textos brancos, nas entrelinhas, no que está detrás do que está atrás
do pensamento. O que só pode ser Deus. Hoje eu queria Deus delicadamente para
mim. Pretensão? Deus ama os pecadores. Até se pronunciou a um pecador
apaixonado feito eu: “hoje me convém pousar em sua casa”. Daí as paredes
brancas, daí a carne branda da escrita, porque Deus sempre se compadeceu das
minorias.
O
cheiro da tinta envenenou-me de poesia. Minhas pálpebras lilases fecham noites
cheias de estrelas castanhas. Imagino-me na paisagem volátil. Eu com meu coração
do tamanho do mundo, ora sendo si mesmo, ora se desconhecendo. Meu coração é
menos puro que essas paredes brancas. Meu coração é febril, inquieto, segredos
percorrem a aorta dilatada... e se a saudade me alcança quase morro nesse sofá gris.
O
amor fracassado é a coisa mais horrível do mundo. Não sei o que é que faz
fechar suas portas, tampouco sei o que o faz irromper. Mas sua natureza
atrevida afunda os incautos na esperança lamacenta de seus desígnios. O amor
sempre me pareceu um cansaço que não me permite tirar os sapatos. O amor me
colocou no ventre da baleia, me vomitou num deserto e ainda acaba me pregando
na cruz. Mas não desisto, embora não saiba nunca o que fazer com ele. É muito
mais fácil lidar com os espaços vazios, pintar as paredes de branco e exercitar
a arte abstrata de arrancar cores do sol em dias parados e lentos, como hoje.
Lucilene
Machado