sexta-feira, 14 de setembro de 2012

De tintas e cores





De tintas e cores

Estou pintando a casa e isso não é ficção. Pintei as paredes principais de um branco fosco para lembrar que a vida necessita ser recriada todos os dias mesmo com a ausência das cores. Pintei uma parede, pequenina, de vermelho. Um atrevimento, eu que sou tão contida... Talvez para lembrar que a paixão é sempre o ponto de partida para qualquer recomeço.
Enquanto os pincéis sobem, descem, atravessam corredores vazios, vou me medindo nas paredes frias. Se eu fosse artista plástica ia me pintar em cores, feito Frida Kalo. Mas sou apenas uma mulher que observa os pincéis  rasparem as costas nas paredes  e apagar aquilo que o pano molhado não conseguiu.  Há manchas que precisam ser encobertas, esmaltadas sob várias camadas, como os sentimentos  que esmagamos nas paredes do espaço-tempo.  
O pintor vê as marcas, enquanto penso coisas pelos ângulos adjacentes do nada. Talvez eu escreva, aproveite a pintura para refletir a vida. Ainda não sei como, a vida é porosa em sua acomodação, dá muitas voltas, e o branco não suporta tanto desamparo. A vida precisa de azuis, de amarelos, de rosas, de cores encarnadas, disformes, desbotadas... Precisa de tardes verdes estiradas sobre o dorso do horizonte, suando suas tinturas sobre o mar de sargaços.
Aqui em casa só preciso desse branco  líquido e do vermelho despencando na sala sobre o vazio de Deus. Todos os vazios são de Deus. Deus mora nesse vazio seco que reside em mim. Às vezes, como hoje, água nenhuma amortece. Fabrico sombras externas para disfarçar o deserto de dentro. O que me refrigera é a arte. A arte é esse luxo que está perdendo o glamour. Tudo que eu quero mostrar com ela é silencioso. Não sofro o bombardeio das horas em trânsito. Só estremeço diante da palavra anunciada. A palavra me penetra, me corrói. Não sei me defender dela, nem sequer da minha. Daí o meu refúgio nos textos brancos, nas entrelinhas, no que está detrás do que está atrás do pensamento. O que só pode ser Deus. Hoje eu queria Deus delicadamente para mim. Pretensão? Deus ama os pecadores. Até se pronunciou a um pecador apaixonado feito eu: “hoje me convém pousar em sua casa”. Daí as paredes brancas, daí a carne branda da escrita, porque Deus sempre se compadeceu das minorias.
O cheiro da tinta envenenou-me de poesia. Minhas pálpebras lilases fecham noites cheias de estrelas castanhas. Imagino-me na paisagem volátil. Eu com meu coração do tamanho do mundo, ora sendo si mesmo, ora se desconhecendo. Meu coração é menos puro que essas paredes brancas. Meu coração é febril, inquieto, segredos percorrem a aorta dilatada... e se a saudade me alcança  quase morro nesse sofá gris.
O amor fracassado é a coisa mais horrível do mundo. Não sei o que é que faz fechar suas portas, tampouco sei o que o faz irromper. Mas sua natureza atrevida afunda os incautos na esperança lamacenta de seus desígnios. O amor sempre me pareceu um cansaço que não me permite tirar os sapatos. O amor me colocou no ventre da baleia, me vomitou num deserto e ainda acaba me pregando na cruz. Mas não desisto, embora não saiba nunca o que fazer com ele. É muito mais fácil lidar com os espaços vazios, pintar as paredes de branco e exercitar a arte abstrata de arrancar cores do sol em dias parados e lentos, como hoje.
                                               Lucilene Machado