quinta-feira, 30 de janeiro de 2014






Diários de bicicleta


            Sábado à tarde, quase outono, quase frio, quase nostalgia ressoando no ar e você sente que a felicidade está bem perto, um movimento e você será capaz de tocá-la. Pela cidade, prenúncios de estreias, de shows, de recomeços, gente voltando das férias, motos correndo e eu a espiar a manifestação de um prazer quase do avesso. É a vida num país tropical.
            O homem, que cruza meu campo de visão, carrega uma mulher no guidão da bicicleta, o que me trouxe à memória qualquer coisa inquietante. Já estive sentada no guidão de uma bicicleta. As mulheres de minha geração estiveram. Era estar dentro de um abraço frouxo que poderia ser apertado a qualquer momento. O homem encurvava a coluna como uma forma de proteção à sua passageira que, por sua vez,  abria um sorriso aos passantes. Era preciso certo equilíbrio para superar as curvas, os desníveis do caminho, o areal acumulado nos vales e quase sempre se terminava em queda.  Bicicleta de um lado, corpos de outro. Ficávamos estatelados no chão a olhar o céu, porque  valia muito mais olhar o céu do que a terra.
            Depois o relógio foi torcendo o tempo sobre os viadutos, sobre os asfaltos velozes onde voam os carros e, o cinza subúrbio poluiu o céu. Os sonhos que eram poéticos se acabaram, como  acaba qualquer modismo. A vida vai urdindo o necessário para dissimular o romantismo dos jovens e já não se vê, pela cidade, cenas como essa. Elas desapareceram dos reinos que desapareceram dos mapas. Ficamos nós tropeçando em memórias antigas, porque as recordações abarcam tudo e não apenas as grandes efemérides do coração.  
            Invejei a moça de cabelos loiros esverdeados (e diga-se, esvoaçantes) que mantinha as pernas esticadas para dar equilíbrio ao ciclista. O casal cheio de gestos livres e risos soltos possuía seu centro de gravidade, seu eixo, sua densidade própria que os olhares opositores não modificavam. Não se cansava de fazer girar a bicicleta como também as sedutoras formas humanas de músculos e tornozelos. Aquelas duas pessoas vagabundeando nas ruas eram o centro do universo. Um universo do qual eu estava à margem. Pareciam pedalar entre os campos de lavanda, de um passado qualquer, e nem se deram conta do meu olhar esticado, tampouco dos suspiros retidos no meu peito. Calei-me para ser digna de observar, dentro dos limites dos meus olhos, a forma loura e esvoaçante da vida escorregando pelo tempo, porque a eternidade é feita de cenas simples e inesquecíveis que podem nascer a qualquer momento. Mas, confesso, senti-me embrutecida. A alma querendo escapar, querendo atirar-se sobre a bicicleta, querendo girar... Corri para casa segurando a barriga, segurando a vida a sacudir-se, a alma insurgida, feito um filho que quer nascer, as vísceras mudando de lugar, ameaça interna, prenúncio de furacão. Eu que andava tão acostumada a coisas prontas não suportei a poesia alheia. O desejo começou a tomar formas estranhas. Precisava me redimir, me purificar, me livrar daquela inveja grudada no estômago.
            Em casa, baixei o filme Butch Cassidy & The Sundance Kid (Dois homens e um  destino) e assisti várias vezes, até a alma se aquietar. Acabo de olhar no espelho e ver-me partida em muitas, todas muito parecidas, todas com a mesma matriz  a arrebanhar  pensamentos, a dar teto a um mesmo silêncio até sermos justificadas. Porque não há mulher, por essas bandas da terra, que não merecesse viver uma cena como esta...
                 
                                                                                                              Lucilene Machado

domingo, 5 de janeiro de 2014




Um amor e um livro

            É incontestável que a leitura é imprescindível para o desenvolvimento humano,   à vida de todo cidadão, sem importar o papel que exerça na sociedade. É ela que capacita a elaboração do pensamento, promove lucidez, possibilita o sujeito a se situar no mundo, compreendendo a intrincada teia de relações que o envolve, de modo que possa se expressar como cidadão consciente de si. Por meio da leitura, pode-se conhecer o pensamento de pessoas que vivem outra cultura, cultivam outros hábitos e também acessar  todo o conjunto de conhecimento de pessoas que viveram muito antes de nós, que de outra forma não seria possível. Por meio da leitura, podemos nos comparar com o outro e refletir sobre a nossa condição de ser e estar no mundo.
            Além de todas estas verdades sobre leitura, existe uma pouco explorada: a importância da leitura nos relacionamentos amorosos. Gente que lê quer estar com outros que leem e, a escolha dos parceiros amorosos está sublinhada por essa possibilidade e não apenas pela aparência. Nossos interesses não seguem um molde genético-egoísta, há um jogo social que envolve encanto, fascínio, interação, retroalimentação, entre outras coisas. Somos seres muito mais interessantes do que a psicologia nos faz acreditar. Nem toda fêmea procura um macho para proporcionar estabilidade financeira ou ser pai de seus filhos; nem todo macho deseja acasalar-se com todas as fêmeas que encontrar. Muitos machos e fêmeas procuram parceiros menos atraentes fisicamente e menos previsíveis em suas condutas. Uma mulher bonita, com corpo proporcional, pode parecer atraente aos homens. Bem como um homem alto com braços fortes, a uma mulher. Entretanto, quando o sujeito derrapa nas primeiras frases, nosso interesse desaparece num piscar de olhos. O que nos leva a concluir que os genes “bons” não contribuem para a fantasia, empatia, criatividade, sensualidade... Os instintos previsíveis são infinitamente tediosos, iguala homens e mulheres. O que torna um relacionamento interessante é o jogo sem fim que ele pode proporcionar: o jogo da interpretação.
            O amor é uma área de nossas vidas extremamente ampla, de psicologia complicada e a imagem que o outro nos reflete tem importância decisiva. O sexo não é apenas uma experiência hormonal é, antes de tudo, uma experiência pessoal, as reações, os olhares, as palavras, os silêncios, os gestos podem ter requintes artísticos. Como na literatura, encontramos os desvios das normas, criamos nossa própria estrutura, estabelecemos nossos valores, seguimos a imaginação e o fluxo da consciência e nos metemos debaixo da pele do outro. O “eu” lírico é o primeiro a ser ativado e preparado para ser fio condutor de uma narrativa em primeira pessoa de duas personagens.  O “eu” autobiográfico interpreta o estado de embriaguez do cérebro e percebe a grande produção de hormônio no corpo, qualificando-a altamente excitante na construção de uma gradação poética epifânica. Impõe o ritmo, introduz palavras, e, interpretando  metáforas e metonímias, dentro da grande área temática, chega-se à catarse, em uma narrativa circular que pode se repetir.
            Nosso pensamento consciente interpreta nossas emoções e dá a elas uma forma. Mas, para conseguir falar sobre uma sensação, refletir sobre ela, evidentemente, faz-se necessário conhecimento, leitura de mundo, leitura do eu, maneira de ser e estar no universo, como nos interpretamos, o que inventamos de nós mesmos, nossas forças e fraquezas, nossas atratividades, nosso charme, nosso jogo social... tudo está conectado à prática leitora.
            Apesar da mídia promover um amor carnal, livre, leve, sem compromissos, nada poético, reduzido aos instintos... é um amor que não transcende ao ego, não cria uma atmosfera de confiança e intimidade e, com certeza, está em desvantagem ao amor entre parceiros que criam seus próprios significados. A palavra ainda é o mais forte alicerce de sustentação de um relacionamento, aliás, a palavra é o próprio amor.

Lucilene Machado