As delícias e as torturas do amor
Li
no livro Ensaios de amor, de Alain de
Boton, que se perguntássemos à maioria das pessoas se elas acreditam ou não no
amor, elas provavelmente diriam que não. Mas essa não é uma resposta
necessariamente verdadeira. É só uma forma como elas se defendem contra o que querem
de fato. Elas acreditam nisso e fingem que não, na medida em que isso é possível.
Se pudessem, jogariam fora todo esse cinismo, mas a maioria também nunca terá chance de se
desfazer dele.
A
questão é que quando se trata de amor, o dito não é exatamente o que se quer
dizer. O amor é cheio de sinais ambíguos, de meias palavras, de silêncios. Para
quem está de fora, o amor chega a ser ridículo. Não foi à toa que Fernando
Pessoa disse que todas as cartas de amor são ridículas. Eu entendo o processo. Os
pensamentos dos apaixonados estão desconjuntados, falta articulação, falta
vocabulário, a linguagem vai tropeçando nos sentimentos, na mente ansiosa, de
modo que a frase perfeita fica para os poetas que vão compô-la dentro da lógica
estrutural, capturando a polivalência da natureza humana.
Em
contrapartida, só os apaixonados conseguem extrair do beijo a doçura que ele
oferece. O leve roçar dos lábios, as tentativas suaves que guardam o sabor
único da pele antes dos lábios se abrirem e tornarem a se juntar em bocas já
sem fôlego, articulando desejos que vão se enroscando no corpo em dimensões
desproporcionais à lógica, ao conhecimento e a qualquer teoria que se estudou.
Quando
se está enamorado, o suspiro potencializado inutiliza o pensamento. Há uma
insanidade qualquer derramada sobre o ato do amor. Não há julgamentos, tudo parece
perfeito sob esse prisma. Até o feio parece belo. A estética amorosa é
redefinida de forma original: uma deformidade, por exemplo, pode ser vista como
um charme. A beleza pela ótica dos apaixonados flerta perigosamente com a
loucura, não se ajusta às regras da proporção, tampouco aos conceitos do
clássico. Não é raro encontrarmos casais completamente díspares e não raro
também nos perguntarmos “o que ela viu nele?” ou vice versa. O amor encobre uma
multidão de defeitos.
Talvez,
seja verdade que não estamos completamente vivos enquanto não formos amados;
que não existimos antes de ter alguém para nos ver existindo; não conseguimos
ter uma ideia adequada sobre nós mesmos se não houver outros em nosso entorno
para nos mostrar o que somos. Para a filosofia, nossas identidades são fluídas
e para sentirmos inteiros necessitamos de pessoas que nos conheçam como nós
mesmos. Ou seja, com o amor existe uma constante e intensa confirmação do eu,
sem dizer que é reconfortante encontrar refúgio para nossa invisibilidade nos
braços de alguém que tem nossa identidade na ponta da língua.
Mas,
o feroz agravante do amor é que não há garantias de continuidade. As juras feitas
diante do pastor, do padre, do juiz... diante dos amigos, da família ou entre
quatro paredes nas noites de luxúria não asseguram nada. Podem assegurar um
casamento, mas o amor, como disse Drummond, foge a regulamentos. Ficamos todos
expostos a um tipo de dor para a qual não se encontrará paliativos. Lori, personagem
de Clarice Lispector, em Uma aprendizagem
ou o livro dos prazeres, vive a purgação do amor. Ela ama pela primeira vez
e precisa passar pelo processo da aprendizagem. O ser apaixonado se mostra, em
sua precariedade, marcado pelos vazios, pela angústia e pela submissão ao outro
que lhe parece maior e mais especial. Lori tenta fugir da angústia, mas cai na
impossibilidade de sentir algo diferente. Sem dor, o amor será impossível.
Assim, ela destemidamente avança na descoberta do que se chama “viver”. Com
dificuldades, o processo vai se construindo entre idas e vindas, lapsos,
rupturas, medo de avançar depressa demais, ou regredir e perder os passos já
avançados, inquietando-se diante da inviabilidade de se explicar ou entender as
incertezas.
Lori
revela as delícias e as desgraças de amar. Outras personagens da literatura,
das telenovelas também incorreram a esse risco de ver a vida detalhada num
tango argentino. Aí é deixar sangrar: Déjame que llore/ como aquel que sufre en
vida/ la tortura de llorar su propia muerte...
Lucilene Machado