domingo, 8 de junho de 2014








Pequenos sonhos, grandes emoções
                             
           
            Meu amigo sonhava com um micro-ondas. Desses que se escreve com palavra composta e propõe um pacto mágico com o tempo. Cozinha, doura e pode ser comprado em 24 parcelas nas Casas Bahia. Mas, não havia, até então, Casas Bahia em Corumbá, de modo que meu amigo foi postergando o sonho. Confesso que tive vontade de presenteá-lo com o tal micro-ondas, não fosse a vida já tão contadinha em notas de um real. Uma amiga em comum também quis ofertar o tal eletrodoméstico que facilita a vida das pessoas, mas temos de reconhecer: era tão bonito vê-lo sonhar que a nós nos bastava assistir o desenrolar do sonho pontuado pelas engrenagens dos dias. 
            Às vezes, provocávamos: “e o micro-ondas, chega este mês?”, só para vê-lo posicionar-se um pouco mais perto da conquista e ir dourando as palavras em frases de primeira pessoa. Uma espécie de poema malogrado, perdido na discrepância entre o sonho e o objeto do sonho. Porque um micro-ondas é vazio de poesia. O campo magnético que geram suas ondas não abriga carga semântica suficiente para embriagar os ouvidos. Ele está condicionado à criação de imediatez  exigida pelo dia-a-dia, atrelado ao descartável, ao fugaz... e o ser da palavra poética não costuma se apoiar nas referências do mercado consumista. Além disso, um micro-ondas é um sonho pequeno que precisa ser idealizado para enganar o nosso ego ambicioso. No entanto, salvo este conceito lógico de função doméstica e pública, que resseca a tinta dos recipientes, a vida que está debaixo de tudo (inclusive do micro-ondas),  a vida pequena, tão ali, tão exata, rodeando de frases uma confissão tão simples, tão ínfima, tão desconexa com a realidade das coisas grandes, essa vida diminutiva me atingiu como um punhal. E isso é inexplicável. As estruturas comunicativas são feitas para comunicar grandes fatos, grandes feitos, comunicar os motivos, as causas... mas não o mistério que mora no interior das coisas. De modo que não sei mensurar meu encantamento pelo sonho singelo do meu amigo. Por dentro um silêncio cada vez maior de palavras que não são ditas, por fora frases rasgadas em mil pedaços sobre o tapete da sala.
            Esfolo meu estômago nas paredes dos abismos, por que sonho com coisas tão complexas?  O que quero é oco e não derrama nunca. O que quero é incompleto. O que busco é o que me escapa e, talvez, nunca  terei. Queria o fascínio de desejar  um forno e todos os significados que ele comporta. Os poucos minutos sacudindo uma vida inteira por obra dessas ondas sinistras que cozinham as memórias. Minha memória é um fogão de lenha rebocado com vermelhão e encerado todos os sábados. Pela manhã era assustadora a incandescência das labaredas, brasas brilhantes incendiando olhares. O tempo já foi o fogo a ferver a água da vida, numa época em que éramos muito mais humanos e pertencíamos ao nosso espaço. Nossa geografia era cenário para lenha e machado. Agora pertencemos ao tempo. Somos simulacros inventados pela mídia. Queremos viver como as pessoas das revistas que tiram fotos nos castelos e mostram os corpos plastificados ao redor de piscinas azuis. Queremos ser reconhecidos, valorizados e superfaturados no mercado do poder. Se possível, ver nosso nome em uma placa de neon... Daí que quando vejo alguém sonhando em ondas curtas, me enterneço.
            A propósito, meu amigo comprou o tal forno, testou receitas, compartilhou com os amigos e já anda com outros objetos bailando nos olhos, porque o tempo não espera e já até temos Casas Bahia em Corumbá.

                                                                                              Lucilene Machado