Pequenos sonhos, grandes emoções
Meu amigo sonhava com um
micro-ondas. Desses que se escreve com palavra composta e propõe um pacto
mágico com o tempo. Cozinha, doura e pode ser comprado em 24 parcelas nas Casas
Bahia. Mas, não havia, até então, Casas Bahia em Corumbá, de modo que meu amigo
foi postergando o sonho. Confesso que tive vontade de presenteá-lo com o tal
micro-ondas, não fosse a vida já tão contadinha em notas de um real. Uma amiga
em comum também quis ofertar o tal eletrodoméstico que facilita a vida das
pessoas, mas temos de reconhecer: era tão bonito vê-lo sonhar que a nós nos
bastava assistir o desenrolar do sonho pontuado pelas engrenagens dos dias.
Às vezes, provocávamos: “e o
micro-ondas, chega este mês?”, só para vê-lo posicionar-se um pouco mais perto
da conquista e ir dourando as palavras em frases de primeira pessoa. Uma
espécie de poema malogrado, perdido na discrepância entre o sonho e o objeto do
sonho. Porque um micro-ondas é vazio de poesia. O campo magnético que geram
suas ondas não abriga carga semântica suficiente para embriagar os ouvidos. Ele
está condicionado à criação de imediatez
exigida pelo dia-a-dia, atrelado ao descartável, ao fugaz... e o ser da palavra poética não costuma se apoiar nas
referências do mercado consumista. Além disso, um micro-ondas é um sonho pequeno que
precisa ser idealizado para enganar o nosso ego ambicioso. No entanto, salvo
este conceito lógico de função doméstica e pública, que resseca a tinta dos
recipientes, a vida que está debaixo de tudo (inclusive do micro-ondas), a vida pequena, tão ali, tão exata, rodeando
de frases uma confissão tão simples, tão ínfima, tão desconexa com a realidade
das coisas grandes, essa vida diminutiva me atingiu como um punhal. E isso é
inexplicável. As estruturas comunicativas são feitas para comunicar grandes
fatos, grandes feitos, comunicar os motivos, as causas... mas não o mistério
que mora no interior das coisas. De modo que não sei mensurar meu encantamento
pelo sonho singelo do meu amigo. Por dentro um silêncio cada vez maior de
palavras que não são ditas, por fora frases rasgadas em mil pedaços sobre o
tapete da sala.
Esfolo meu estômago nas paredes dos
abismos, por que sonho com coisas tão complexas? O que quero é oco e não derrama nunca. O que
quero é incompleto. O que busco é o que me escapa e, talvez, nunca terei. Queria o fascínio de desejar um forno e todos os significados que ele
comporta. Os poucos minutos sacudindo uma vida inteira por obra dessas ondas
sinistras que cozinham as memórias. Minha memória é um fogão de lenha rebocado
com vermelhão e encerado todos os sábados. Pela manhã era assustadora a incandescência
das labaredas, brasas brilhantes incendiando olhares. O tempo já foi o fogo a
ferver a água da vida, numa época em que éramos muito mais humanos e
pertencíamos ao nosso espaço. Nossa geografia era cenário para lenha e machado.
Agora pertencemos ao tempo. Somos simulacros inventados pela mídia. Queremos
viver como as pessoas das revistas que tiram fotos nos castelos e mostram os
corpos plastificados ao redor de piscinas azuis. Queremos ser reconhecidos,
valorizados e superfaturados no mercado do poder. Se possível, ver nosso nome
em uma placa de neon... Daí que quando vejo alguém sonhando em ondas curtas, me
enterneço.
A propósito, meu amigo comprou o tal
forno, testou receitas, compartilhou com os amigos e já anda com outros objetos
bailando nos olhos, porque o tempo não espera e já até temos Casas Bahia em
Corumbá.
Lucilene
Machado