sexta-feira, 18 de novembro de 2011

Meu mar


À tarde, posso ver o horizonte aqui da sacada. Sua linha delineando céu e terra. Só não posso ver o mar. Penso que o mar é a minha grande ausência. Há dias em que eu gostaria de ver navios ancorando, ver pescadores lançando redes a partir das embarcações primitivas e a água batendo na areia impulsionada pelo coração do mar. Sinto falta dessa coisa fluída. Desse marulhar a envolver a minha alma... Sinto falta de uma bolha d’água a me abrigar. No entanto, apesar das inúmeras ausências, não me falta imaginação. Desde as encostas frias da minha parede de pedra, meu pensamento cego lança âncoras ao mar. Mergulha nas profundezas dos abismos líquidos e traz à tona os pequenos tesouros esquecidos no fundo do meu mar, do meu oceano interior, tão particularmente navegável. Há horas que navegar é preciso e viver não é preciso.
O mundo é longe. Para, dorme, sonha. Recorda. A memória é a encenação azul do que se viveu, e a vida é água. Queria ter a simplicidade de adivinhar as coisas e intuir o destino do mar, o capricho das ondas espumantes... Mas fico aqui acumulando informações que são transformadas em saberes que não levam a nada e até me arrancam a ternura, não fosse a poesia de Manoel de Barros a me alertar diuturnamente, num tom meigo e aconchegante: "Quem acumula muita informação perde o condão de adivinhar. Sábio é o que adivinha". Eu queria adivinhar o segredo da flor da violeta que ganhei nesse domingo, a razão  dela ter aceito viver num vaso de dez centímetros, tão espremida e tão florida. Por que as pessoas têm a mania de espremer o amor? O casal que passou a noite em uma cama de solteiro sabe o que é isso. O amor aceita qualquer espaço. Por menor que seja. E se ajeita, se adapta, se acomoda e ainda produz flores. E olha eu expondo a flor à luminosidade do sol para que não morra e continue a exprimir "eu-te-amos" e "eu-te-queros" num silêncio de planta quase artificial que esteve exposta numa prateleira de supermercado, longe, muito longe do mar.
E olha eu perdida em meus naufrágios. Palavras sopradas sobre a superfície molhada dos meus lábios. O tempo adentrando ao passado, o infinito zunindo, perguntas  misturando-se com respostas e, apesar de todo sal na boca, ainda pulsa em mim uma insistente reserva de afeto. Uma insistente vontade de plantar árvores aladas que cresçam até a janela do meu quarto e me saúdem pela manhã com suas flores cor-de-rosa. As árvores são espectros de mim. Sou formada por muitas vidas. Uma delas é um vegetal que sangra raízes pelos veios tintos da terra até chegar ao mar. O próprio mar ausente que me traz à sacada para fumar um cigarro imaginário - porque também não fumo – mas, às vezes, sinto falta do vício que não  tive. Seria também uma ausência?
Ah, Deus, esses horizontes me espiando... Esta primavera pondo lírios nos meus braços. Essas borboletas cor de céu! Como é bela a vida tremulando na minha frente! O céu e a terra trançados por frases bucólicas. É certo que daqui não posso ver o mar, mas minha alma está quase escapulindo para rolar na areia sob a brisa suave do entardecer. E como diria Dostoiévski: "A vida exterior só serve para despertar-nos o que existe nas profundezas..." E minhas profundezas são oceanos refletidos nesse meu olhar de mar roubado, nessa minha lágrima com gosto de sal...
                                               Lucilene Machado

domingo, 13 de novembro de 2011

Meu professor de português


Meu Professor de Português

Não  posso  descrever  com  fidelidade  o  seu  rosto.  Há  certas minúcias  e  detalhes  que  o  tempo  se  encarrega  de  apagar.  Não posso,  por  exemplo,  descrever  seu  nariz,  sua  boca,  mas,  em algum  canto  do  meu  cérebro  ficou  gravado  seu  olhar  míope, suas  sobrancelhas  cerradas  entrecortando-se  acima  dos  olhos. Era um olhar tão grave que eu não ousava desafiar. Ele foi meu professor  por  um  período  de  três  anos.  Durante  a  5ª,  6ª  e  7ª séries,  consecutivamente.  Excluindo os  domingos,  eu  o encontrava todos os dias. Era mal-humorado, carrancudo e não fazia  a  mínima  questão  de  cumprimentar  os  transeuntes. Esboçar um sorriso? Só para as meninas do magistério. Quando elas  passavam  ele  estendia  um  olhar  benevolente,  como  se tivesse  alguma  carência  afetiva,  e  sempre  exclamava  a  mesma frase: “ah, se eu tivesse 20 anos...”
Nessas horas eu chegava a ter  pena  dele.  O  silêncio  que  procedia  após  a  fala  parecia avolumar-se  dentro  do  peito,  sufocando  o  espaço  interior.  Com olhos faiscantes ele destilava sobre nós o veneno da frustração: “Você aí que parece a Belém-Brasília, leia sua redação”. Essa era eu.  Às  vezes,  também  me  chamava  de  magricela,  quando  não, dizia  apenas  “você  aí”.  Nunca  me  lembro  de  tê-lo  ouvido pronunciar o meu nome, nem os de minhas amigas. Será que ele temia  criar  algum  laço  mais  profundo? Se  essa  era  a  intenção,  ele conseguiu. Eu mesma cheguei a ter ódio dele. Ódio esse, que eu guardava em sigilo e disfarçava com um sorriso amarelo pra que ele  não  percebesse.
 Mas,  quando  o  rancor  silencioso  vai  se avolumando  e  transforma-se  numa  bola  enorme,  arremessada freneticamente  do  estômago  para  a  garganta,  num  ricto nervoso, a gente desrespeita a lei e vomita. Vomita tudo de uma só vez. Eu estava cansada de tanto escrever redação, narração, descrição,  dissertação...  e  todos  os  “ãos”  que  ele  usava  para discriminar  os  textos.  Pior  é  que  nos  mandava  ler  em  voz  alta. Líamos,  e  ele  criticava:  “Precisa  melhorar,  está  faltando  a essência”.  Quanto  tempo  vaguei  à  procura  da  tal  essência! Pensava  ser  ela  um  fluído  aéreo  que  eu  jamais  conseguiria captar.  Naqueles  três  anos,  tudo  o  que  aprendi  estava relacionado  com  a  produção  de  textos.  Na  época  eu  já  sabia  o que  era  cacófato,  pleonasmo,  ambigüidade,  metáfora... entretanto,  não  sabia  diferenciar  o  objeto  direto  do  indireto. Mas  como  eu  ia  dizendo,  chegou  o  dia  do  vômito.  Eu disse vômito? (Céus!  Se  ele  lesse  isso...)  Era  a  prova  do último bimestre da 7 ª série. Como de costume, ele nos mandou escrever uma redação. Tema livre.
                Dissertei sobre o seguinte tema: “O professor que eu quero ter”. Fui fundo. Imersão total. Devolvi a  ele  a  palavra  cortante  que  havia  me  escalavrado.  Devolvi  na forma mais aguda das estruturas lingüística. Penso que doeu. Na entrega dos boletins, ele chamou-me à parte. Tremi. As pernas bambearam.  Os  joelhos  chegaram  a  bater  um  no  outro.  Fui capaz  de  imaginar  a  expressão  da  minha  mãe  observando  um zero  no  meu  boletim...  como  me  enganei!  Ele  havia  me  dado dez! Apertou minha mão e disse: “Vá em frente, você encontrou a essência.” Descobri, numa fração de segundo que a essência é o  conjunto  de  sentimentos  que  dá  vida  ao  texto,  é  a  natureza das  coisas  reveladas  na  sua  intimidade.  Essa  é  a  melhor imagem, dele, que guardei na retina da minha memória. Mesmo por linhas tortas, levou-me a tomar gosto pela escrita. E isso é suficiente para eu perdoar meu velho professor de português.

Lucilene Machado