segunda-feira, 29 de abril de 2013

ENCONTRO






ENCONTRO



            O moço chegou sem nenhuma referência. Provavelmente veio de um lugar de coisas acontecidas, de palavras perdidas,  relações esgotadas,  mentiras transbordadas,  verdades incompreendidas... Não me recordo se era quarta ou quinta-feira, apenas que era dia de percorrer longas distâncias dentro de mim. Não havia nenhuma comemoração. Ou havia?  Talvez houvesse alguma vibração positiva brindando aquela casualidade, embora encontros não ocorram ao acaso. Muitas coisas no universo são movidas para que duas pessoas estejam ao mesmo tempo em um mesmo lugar. Mas optamos pela indiferença por uma única razão: somos tolos! Ele com uma tolice inata aos homens bonitos. Eu, com uma tolice inata às mulheres tímidas. Neste caso, brindamos com silêncio o que fingimos não reconhecer.
            Nossas órbitas oculares, essas sim se reconheceram, as pupilas fixas deixaram escorrer o olhar de desejo. Uma música imaginária circulava nossos corpos no centro de  qualquer futuro. Tentei disfarçar, várias vezes. O moço também. Mãos na mesa, mãos no queixo, mãos no joelho. Meu sangue fazia mil curvas, como um rio subterrâneo, em movimento, precisando desaguar. Desejaríamos ambos nos entregar a uma vontade maior que a nossa? Não ouvi respostas, apenas as pulsações de um invisível relógio a esmagar o tempo dentro de suas ferragens.
            Ele olhou-me de frente como se parasse de respirar, como se estivesse diante de um deserto, diante do mar, debaixo de uma árvore no meio do campo,  debaixo da chuva, debaixo da neve, como se fôssemos uma única imagem, pronta a ser copiada. Um silêncio brando nos envolveu como se fôssemos únicos no recinto. Nada na vida me pareceu mais linguagem do que o silêncio. O que nos fez desprezar as palavras. Talvez fossem excedentes. Talvez prematuras. Talvez atrevidas. Quem é capaz de traçar, antecipadamente, um caminho por onde percorrerão as palavras? O toque, o toque poderia ser menos comprometedor. Mas também não nos tocamos. Desejei a palidez de suas mãos de mármore. Quis acariciar a artéria azul saltada pelo sangue vindo do coração, descansar minha cabeça nas palmas abertas a escancarar as linhas  que compunham o seu destino.
            O tilintar dos talheres arrancou-me de minha caverna.  E o moço? Bem, o moço se foi. Discretamente, como chegou. Levou o sonho, a esperança, o prazer...   já seria a hora de envilecermos? 
            Ele tinha de ir. E eu fiquei ali, na mesma posição, olhando para as costas do moço e pensando como teria sido se ele ficasse.  Se seria bom, se ele escrevia bem, se gostava de tomar chá pela madrugada...  Fiquei olhando para o moço e ele indo embora... Nem fiquei sabendo se ele lia Pablo Neruda, se gostava de  Pessoa....  se já havia chorado por amor, se tinha algum sinal de infância... Por que aquele cuidado excessivo em apagar as pegadas, em não deixar pistas? Por que a precaução em se  manter desconhecido?
            Fiquei pensando nas coisas que a gente perde, sem saber o que está perdendo, nas pequenas conspirações do destino e na dolorida hora de olhar alguém partindo e desejar profundamente que ele fique. Talvez a poesia explique. Diz Neruda: "foi só uma hora longa como uma veia, e entre o ácido e a paciência do tempo enrugado, transcorremos, separando as sílabas do medo e a ternura”.

 Lucilene Machado

sexta-feira, 12 de abril de 2013

Van Gogh, eu e algumas reflexões



Van Gogh, eu e algumas reflexões

            Aniversário outra vez. E já foram tantos os “abris” que me repito por condicionamento. Esboço o mesmo sorriso diante dos gestos carinhosos e dos cumprimentos efusivos, respondo mensagens de amigos distantes e até dos que não são tão amigos, mas se dão ao trabalho de me enviar um cartão online, uma frase pronta... como diz o poeta, tudo vale a pena se a alma não é pequena. E a alma cresce nesse período, corre atrás de um colo para se deitar. Quer se aquietar. Talvez seja para se renovar. A alma sempre necessita um renovo. Precisa se aliviar do passado, desprender-se dos fardos antigos para recomeçar. É a hora em que nos deparamos com escolhas cruciantes: “o que devo guardar e o que devo refugar?” é o famoso balanço existencial. Não sei se alguém é capaz de passar por esse período sem essas reflexões. Para mim  é impossível. Sempre sou surpreendia pela voz da consciência a interrogar: “o que fez de relevante no ano que passou?”
            A contabilidade é inevitável. A princípio, tento evitar as comparações com anos anteriores e suprimir do balancete, a coluna de saldos. Nada de contabilizar ganhos ou perdas. A vida além de cumulativa sempre parecerá mal resolvida. Um ano de vida cabe em uma gaveta. Textos, fotos de viagens, bilhetes, uma rosa seca, CDs, poesias que escrevi num exercício de libertação, um frasco de perfume vazio, um anel torto, um sabonete que ganhei de uma amiga, um dente-de-leite de minha sobrinha, uma declaração de carinho, um amor que ainda não dei nome e saudades, muitas saudades. Remexo no fundo da gaveta e encontro uma madeixa de meus cabelos que eram longos em abril passado, como mudamos no decorrer de um ano! Tecemos a vida com um fio tão frágil e aí vem o tempo, implacável, e rompe tudo. O tempo é assim, cruel. Faz-nos sentir perdedores neste balanço. Que importa? O mundo está cheio de perdedores que eu admiro. Há coisa mais elegante que saber perder? Nessas ocasiões, recordo Van Gogh e sua loucura amarela. Como alguém tão torturado pôde usar o amarelo daquele jeito? Como alguém tão detonado pela vida pôde pintar quadros tão alegres? Um suposto perdedor sem a mínima ideia de dimensão da própria obra.
            Eu queria um quadro de Van Gogh pendurado na parede interna da minha sala para não esquecer que a loucura tem uma beleza glamourosa. Mas não sei como reagiria se ao invés disso olhasse para o retrato do autor faltando parte da orelha. A realidade choca, mas não é o que conta hoje. O que ficou foi a sensibilidade e suas variantes. A ótica da racionalidade põe limites concretos e ásperos. Admiro os racionais, mas não é a lógica que administra as atitudes humanas. A lógica se flexiona mediante a força da intuição. A intuição é automática, não precisa  justificar seus mecanismos. E os artistas se permitem gerenciar pela intuição. Abstratos. A abstração do raciocínio é o que nos liberta da realidade. O que não vemos é o que de fato está à nossa frente. E é melhor que não vejamos. As coisas se limitam a ser o que são quando as olhamos de frente.  Nunca olho uma questão pela frente e, na hora amarela do dia entro no meu quarto como se entrasse no mar e respondo, intuitivamente, ao vendaval de perguntas que se enroscam nos meus cabelos, já não tão longos. Mas tenho ainda as orelhas perfeitas e ouço os rumores do universo desafiando-me com o vazio da eternidade. A vida é muito mais do que colocamos em balanço. Lembro-me do amor que se manifestou, de várias formas e intensidade, durante o ano; das boas conversas, dos rostos que encheram minhas noites, das palavras que me visitaram. Tive tanto, nem sei se tenho o direito de pedir mais. Se tivesse, pediria como Salomão, sabedoria. Sabedoria simples que me permita chorar assistindo ao filme “A bela e a fera” por já ter concluído que os olhos são enganosos, o coração também.
                                                                       Lucilene Machado

quinta-feira, 4 de abril de 2013

PEQUENOS OUTONOS





Pequenos outonos

                O outono chegou ontem pela noitinha, contrariando todos os calendários. Percebi sua chegada quando a música de um violino tingiu com vinho as pálpebras dos olhares. Pressuponho que fui a primeira a absorver o encantamento, a primeira a reconhecer o início das indecifráveis ternuras. Outono é o tempo das paixões tardias, dos instintos aguçados, do brilho das estrelas  derramado sobre as noites, da carne sendo tocada pelo espírito... O outono é a compensação do que não foi aproveitado na  primeira etapa da vida, quando orgasmos se precipitavam na juventude no desejo.
            Se o velho Drummond estivesse ao meu lado, na hora em que o som do violino calou as últimas notas do estridente verão, se me emprestasse o seu verbo conjugado às últimas declinações, se me emprestasse o seu olhar que penetrou o mundo vasto mundo, e sua mão cheia de humanidade, com certeza eu seria capaz de narrar com preciosos detalhes a sensação de completude que o vazio do outono trouxe.
            A pressa dos homens a correr dentro da noite, a caçar algo que não sabem, por um momento dissipou-se. Um jovem, com um violino, lentamente invadia com suas mãos, nossos sentidos desacostumados de arte. Veio como uma luz projetando beleza aos presentes. Seus olhos palpitantes atravessaram-me como uma flecha. Um homem com quem se pode morrer, pensei precipitadamente. A morte como uma sagração da qual só os mais puros são dignos. Muita gente desaparece, desintegra, mas só uma minoria morre. Poucos conseguem rasgar o véu de alto a baixo. A sublime nudez da morte só é oferecida aos sensíveis. Toda mulher, depois dos quarenta, carrega uma morte silenciosa no olhar. Uma morte que navega pelo sangue e arde como brasa. A beleza é transformada em intimidade acolhedora, pronta para adivinhar, num instante, a eternidade inteira.
            É no outono que a juventude se vinga, sonha alto as coisas da loucura. Nutre-se dessa poesia que se avoluma a cada dia que passa. De repente, o mundo inclina-se para um lado da noite, uma música risca as paredes, um olhar arranca as capas da nossa aparência, uma palavra, um suspiro... e a vida inteira está ali, como um grande acontecimento. Sentimo-nos criaturas magnetizadas, etéreas e quase conseguimos penetrar, pela fístula da lembrança, o tempo em que fomos anjos. A leveza da existência agita suas echarpes flutuantes diante dos nossos olhos. Tudo é instante.
            Mas não se pode manter essa abstração por muito tempo. De modo que voltei ao plano concreto de charutos e licores, de gravatas listradas, bolsas de grifes e demais atributos exteriores que movimentam o mundo. O moço do violino, que nos levou a acariciar a felicidade, dava voltas com o garfo num prato de espaguete. (Músicos clássicos não deveriam comer em público). A boca que imaginei rescender gengibre, mastigava minhas ilusões. Os lábios carnudos, que julguei sensuais, pareciam  inchados, picados por uma abelha. Àquela altura, teria a cabeça povoada por preocupações pessoais, contratos, conta bancária, senhas... já não era o homem com quem requintadamente eu desejei morrer. A pressa voltou a circular velozmente entre pratos e garrafas enquanto  me afastei com um ar de espanto, o mesmo ar que corta o meu pensamento e o põe do avesso nessa folha de papel. 
                                                                  
  LUCILENE MACHADO