quinta-feira, 4 de abril de 2013

PEQUENOS OUTONOS





Pequenos outonos

                O outono chegou ontem pela noitinha, contrariando todos os calendários. Percebi sua chegada quando a música de um violino tingiu com vinho as pálpebras dos olhares. Pressuponho que fui a primeira a absorver o encantamento, a primeira a reconhecer o início das indecifráveis ternuras. Outono é o tempo das paixões tardias, dos instintos aguçados, do brilho das estrelas  derramado sobre as noites, da carne sendo tocada pelo espírito... O outono é a compensação do que não foi aproveitado na  primeira etapa da vida, quando orgasmos se precipitavam na juventude no desejo.
            Se o velho Drummond estivesse ao meu lado, na hora em que o som do violino calou as últimas notas do estridente verão, se me emprestasse o seu verbo conjugado às últimas declinações, se me emprestasse o seu olhar que penetrou o mundo vasto mundo, e sua mão cheia de humanidade, com certeza eu seria capaz de narrar com preciosos detalhes a sensação de completude que o vazio do outono trouxe.
            A pressa dos homens a correr dentro da noite, a caçar algo que não sabem, por um momento dissipou-se. Um jovem, com um violino, lentamente invadia com suas mãos, nossos sentidos desacostumados de arte. Veio como uma luz projetando beleza aos presentes. Seus olhos palpitantes atravessaram-me como uma flecha. Um homem com quem se pode morrer, pensei precipitadamente. A morte como uma sagração da qual só os mais puros são dignos. Muita gente desaparece, desintegra, mas só uma minoria morre. Poucos conseguem rasgar o véu de alto a baixo. A sublime nudez da morte só é oferecida aos sensíveis. Toda mulher, depois dos quarenta, carrega uma morte silenciosa no olhar. Uma morte que navega pelo sangue e arde como brasa. A beleza é transformada em intimidade acolhedora, pronta para adivinhar, num instante, a eternidade inteira.
            É no outono que a juventude se vinga, sonha alto as coisas da loucura. Nutre-se dessa poesia que se avoluma a cada dia que passa. De repente, o mundo inclina-se para um lado da noite, uma música risca as paredes, um olhar arranca as capas da nossa aparência, uma palavra, um suspiro... e a vida inteira está ali, como um grande acontecimento. Sentimo-nos criaturas magnetizadas, etéreas e quase conseguimos penetrar, pela fístula da lembrança, o tempo em que fomos anjos. A leveza da existência agita suas echarpes flutuantes diante dos nossos olhos. Tudo é instante.
            Mas não se pode manter essa abstração por muito tempo. De modo que voltei ao plano concreto de charutos e licores, de gravatas listradas, bolsas de grifes e demais atributos exteriores que movimentam o mundo. O moço do violino, que nos levou a acariciar a felicidade, dava voltas com o garfo num prato de espaguete. (Músicos clássicos não deveriam comer em público). A boca que imaginei rescender gengibre, mastigava minhas ilusões. Os lábios carnudos, que julguei sensuais, pareciam  inchados, picados por uma abelha. Àquela altura, teria a cabeça povoada por preocupações pessoais, contratos, conta bancária, senhas... já não era o homem com quem requintadamente eu desejei morrer. A pressa voltou a circular velozmente entre pratos e garrafas enquanto  me afastei com um ar de espanto, o mesmo ar que corta o meu pensamento e o põe do avesso nessa folha de papel. 
                                                                  
  LUCILENE MACHADO

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