sábado, 17 de dezembro de 2011

O amor, o belo e outras magias


O amor, o belo e outras magias

Há noites em que ele quer falar. Falar com a voz, com os olhos, com as mãos... Falar mansamente, com gestos que me parecem escolhidos. E eu escuto calada para não arranhar seu romantismo com minha aspereza. Hoje, entre outras coisas, sinto a cota de aspereza altíssima e estou consciente de que só poderia falar do óbvio. Diria frases terrivelmente exatas, apesar do meu existencialismo inato, da minha náusea sartriana, da minha vocação para as sombras interiores... Às vezes a vida suga toda minha sutileza, sem nenhuma clemência, de forma que eu me jogo na cama, com o meu corpo continente  esvaziado de palavras.
Tento experimentar verbos de ação para operar sobre a realidade pungente. Mas o único verbo que passa pela minha mente (ou pelo meu corpo) é o verbo amar. Amar na forma transitiva direta, do sujeito ao objeto. Ele não capta a mensagem e quer exprimir sentimentos, fazer galanteios, amar na forma mais abstrata da língua. É tão difícil exercitar a linguagem a dois. Sobretudo quando  envolve linguagem verbal e não-verbal. Como diz Adélia Prado “quem entender a linguagem entende Deus, cujo filho é verbo”. Isso me faz tremer. Eu e minhas verdades inventadas. Minha mania de mesclar sagrado e profano, de enrolar e esticar frases... Não ouso abrir a boca, minhas sensibilidades andam desgovernadas. Com meia dúzia de palavras sou capaz de erguer trincheiras de arame farpado. Mas me contenho. Sei que muito tempo vai passar sem que eu veja algo mais sensual do que essas mãos brancas executando coreografias no ar. Não são as mãos pelas mãos. É como se fios de eternidade se desprendessem de seus dedos e atassem o meu passado ao futuro.
Parece grotesca a comparação, mas lembra minha mãe esticando um melado de açúcar que era transformado em balas. A alquimia encantava meus olhos de menina. Provavelmente, ainda hoje encantaria. Conforme minha mãe puxava o melado quente com as mãos, uma cortina de fios dourados se abriam e novamente eram torcidos  até se amalgamarem em uma corda dourada cortada rapidamente em formato de balas. As balas mais lindas que eu já vi. Meu prazer em presenciar a cena era maior que a degustação do doce. Por momentos, eu ficava hipnotizada. O que me faz pensar que nada é belo em si mesmo. Tudo tem uma história, um contexto, uma performance, uma sedução. O encantamento pode não estar no produto final.
Volto os olhos para o homem que por si mesmo não é bonito. Mas alguma sensibilidade, alguma simplicidade ou aspectos que não consigo mensurar entram na matéria dele e misteriosamente o reino Olimpo da beleza se posiciona à minha frente. Viver passa a ser tão mágico quanto fazer balas de açúcar. Uma segurança estranha adentra o meu ser. Sinto que posso abrir o coração sem nenhum perigo e ser a mulher que sou, sem nenhuma máscara. Existir passa a ser esse algo completamente fora do comum, e a  linguagem, posso dizer, foi apenas um pretexto para continuar a acreditar que o amor faz todas as coisas mais belas.

sexta-feira, 18 de novembro de 2011

Meu mar


À tarde, posso ver o horizonte aqui da sacada. Sua linha delineando céu e terra. Só não posso ver o mar. Penso que o mar é a minha grande ausência. Há dias em que eu gostaria de ver navios ancorando, ver pescadores lançando redes a partir das embarcações primitivas e a água batendo na areia impulsionada pelo coração do mar. Sinto falta dessa coisa fluída. Desse marulhar a envolver a minha alma... Sinto falta de uma bolha d’água a me abrigar. No entanto, apesar das inúmeras ausências, não me falta imaginação. Desde as encostas frias da minha parede de pedra, meu pensamento cego lança âncoras ao mar. Mergulha nas profundezas dos abismos líquidos e traz à tona os pequenos tesouros esquecidos no fundo do meu mar, do meu oceano interior, tão particularmente navegável. Há horas que navegar é preciso e viver não é preciso.
O mundo é longe. Para, dorme, sonha. Recorda. A memória é a encenação azul do que se viveu, e a vida é água. Queria ter a simplicidade de adivinhar as coisas e intuir o destino do mar, o capricho das ondas espumantes... Mas fico aqui acumulando informações que são transformadas em saberes que não levam a nada e até me arrancam a ternura, não fosse a poesia de Manoel de Barros a me alertar diuturnamente, num tom meigo e aconchegante: "Quem acumula muita informação perde o condão de adivinhar. Sábio é o que adivinha". Eu queria adivinhar o segredo da flor da violeta que ganhei nesse domingo, a razão  dela ter aceito viver num vaso de dez centímetros, tão espremida e tão florida. Por que as pessoas têm a mania de espremer o amor? O casal que passou a noite em uma cama de solteiro sabe o que é isso. O amor aceita qualquer espaço. Por menor que seja. E se ajeita, se adapta, se acomoda e ainda produz flores. E olha eu expondo a flor à luminosidade do sol para que não morra e continue a exprimir "eu-te-amos" e "eu-te-queros" num silêncio de planta quase artificial que esteve exposta numa prateleira de supermercado, longe, muito longe do mar.
E olha eu perdida em meus naufrágios. Palavras sopradas sobre a superfície molhada dos meus lábios. O tempo adentrando ao passado, o infinito zunindo, perguntas  misturando-se com respostas e, apesar de todo sal na boca, ainda pulsa em mim uma insistente reserva de afeto. Uma insistente vontade de plantar árvores aladas que cresçam até a janela do meu quarto e me saúdem pela manhã com suas flores cor-de-rosa. As árvores são espectros de mim. Sou formada por muitas vidas. Uma delas é um vegetal que sangra raízes pelos veios tintos da terra até chegar ao mar. O próprio mar ausente que me traz à sacada para fumar um cigarro imaginário - porque também não fumo – mas, às vezes, sinto falta do vício que não  tive. Seria também uma ausência?
Ah, Deus, esses horizontes me espiando... Esta primavera pondo lírios nos meus braços. Essas borboletas cor de céu! Como é bela a vida tremulando na minha frente! O céu e a terra trançados por frases bucólicas. É certo que daqui não posso ver o mar, mas minha alma está quase escapulindo para rolar na areia sob a brisa suave do entardecer. E como diria Dostoiévski: "A vida exterior só serve para despertar-nos o que existe nas profundezas..." E minhas profundezas são oceanos refletidos nesse meu olhar de mar roubado, nessa minha lágrima com gosto de sal...
                                               Lucilene Machado

domingo, 13 de novembro de 2011

Meu professor de português


Meu Professor de Português

Não  posso  descrever  com  fidelidade  o  seu  rosto.  Há  certas minúcias  e  detalhes  que  o  tempo  se  encarrega  de  apagar.  Não posso,  por  exemplo,  descrever  seu  nariz,  sua  boca,  mas,  em algum  canto  do  meu  cérebro  ficou  gravado  seu  olhar  míope, suas  sobrancelhas  cerradas  entrecortando-se  acima  dos  olhos. Era um olhar tão grave que eu não ousava desafiar. Ele foi meu professor  por  um  período  de  três  anos.  Durante  a  5ª,  6ª  e  7ª séries,  consecutivamente.  Excluindo os  domingos,  eu  o encontrava todos os dias. Era mal-humorado, carrancudo e não fazia  a  mínima  questão  de  cumprimentar  os  transeuntes. Esboçar um sorriso? Só para as meninas do magistério. Quando elas  passavam  ele  estendia  um  olhar  benevolente,  como  se tivesse  alguma  carência  afetiva,  e  sempre  exclamava  a  mesma frase: “ah, se eu tivesse 20 anos...”
Nessas horas eu chegava a ter  pena  dele.  O  silêncio  que  procedia  após  a  fala  parecia avolumar-se  dentro  do  peito,  sufocando  o  espaço  interior.  Com olhos faiscantes ele destilava sobre nós o veneno da frustração: “Você aí que parece a Belém-Brasília, leia sua redação”. Essa era eu.  Às  vezes,  também  me  chamava  de  magricela,  quando  não, dizia  apenas  “você  aí”.  Nunca  me  lembro  de  tê-lo  ouvido pronunciar o meu nome, nem os de minhas amigas. Será que ele temia  criar  algum  laço  mais  profundo? Se  essa  era  a  intenção,  ele conseguiu. Eu mesma cheguei a ter ódio dele. Ódio esse, que eu guardava em sigilo e disfarçava com um sorriso amarelo pra que ele  não  percebesse.
 Mas,  quando  o  rancor  silencioso  vai  se avolumando  e  transforma-se  numa  bola  enorme,  arremessada freneticamente  do  estômago  para  a  garganta,  num  ricto nervoso, a gente desrespeita a lei e vomita. Vomita tudo de uma só vez. Eu estava cansada de tanto escrever redação, narração, descrição,  dissertação...  e  todos  os  “ãos”  que  ele  usava  para discriminar  os  textos.  Pior  é  que  nos  mandava  ler  em  voz  alta. Líamos,  e  ele  criticava:  “Precisa  melhorar,  está  faltando  a essência”.  Quanto  tempo  vaguei  à  procura  da  tal  essência! Pensava  ser  ela  um  fluído  aéreo  que  eu  jamais  conseguiria captar.  Naqueles  três  anos,  tudo  o  que  aprendi  estava relacionado  com  a  produção  de  textos.  Na  época  eu  já  sabia  o que  era  cacófato,  pleonasmo,  ambigüidade,  metáfora... entretanto,  não  sabia  diferenciar  o  objeto  direto  do  indireto. Mas  como  eu  ia  dizendo,  chegou  o  dia  do  vômito.  Eu disse vômito? (Céus!  Se  ele  lesse  isso...)  Era  a  prova  do último bimestre da 7 ª série. Como de costume, ele nos mandou escrever uma redação. Tema livre.
                Dissertei sobre o seguinte tema: “O professor que eu quero ter”. Fui fundo. Imersão total. Devolvi a  ele  a  palavra  cortante  que  havia  me  escalavrado.  Devolvi  na forma mais aguda das estruturas lingüística. Penso que doeu. Na entrega dos boletins, ele chamou-me à parte. Tremi. As pernas bambearam.  Os  joelhos  chegaram  a  bater  um  no  outro.  Fui capaz  de  imaginar  a  expressão  da  minha  mãe  observando  um zero  no  meu  boletim...  como  me  enganei!  Ele  havia  me  dado dez! Apertou minha mão e disse: “Vá em frente, você encontrou a essência.” Descobri, numa fração de segundo que a essência é o  conjunto  de  sentimentos  que  dá  vida  ao  texto,  é  a  natureza das  coisas  reveladas  na  sua  intimidade.  Essa  é  a  melhor imagem, dele, que guardei na retina da minha memória. Mesmo por linhas tortas, levou-me a tomar gosto pela escrita. E isso é suficiente para eu perdoar meu velho professor de português.

Lucilene Machado

segunda-feira, 3 de outubro de 2011

Não esquecer que por enquanto é tempo de Morangos


Não esquecer que por enquanto  é tempo de Morangos

               Emprestei esta frase do livro A hora da estrela de Clarice Lispector. Não é uma frase estratégica, dessas usadas para enganchar o leitor, tampouco foi elaborada para subordinar uma idéia nova. Simplesmente é a última frase do livro. Aquela que  pouco será entendida e da qual você se lembrará todas as vezes que comer morangos. E hoje comi morangos, vermelhos e doces, como costumam ser as frutas sazonais. Retirei as folhinhas verdes com cuidado, sentei no sofá e, enquanto comia, ouvia meu pai contar a história do papagaio de seu amigo. Foi um papagaio que apareceu no quintal, sem mais nem menos, e foi ficando, fazendo-se dono do espaço. Gracioso, atrevido e belo foi encantando o dono da casa. Pela manhã dizia bom dia, repetia adjetivos do repertório masculino, repetia nomes, cantava e foi enchendo a casa do homem de palavras. O homem sentiu-se privilegiado ao ter sido eleito por um pássaro. Ria à toa.  Comprou comida, construiu uma armação de varetas na varanda para dar guarida ao bichinho, convidou os amigos para conhecê-lo e, nesses encontros, aproveitava para exagerar nos qualificativos sobre o animal.
               Enquanto eu enchia a boca de morangos, meu pai enchia a história de poesia, de cores, de penas, de vôos. E eu pensando onde é que ia dar aquela narrativa. Talvez ele quisesse levantar algumas questões para serem discutidas posteriormente. De modo que fui enumerando mentalmente o que faria sentido para uma discussão. Comecei pela solidão do homem, o amor incondicional dos animais, a vaidade do ser humano, o orgulho, a vocação das pessoas para se apossarem do animal alheio... Mas, antes de tudo, eu deveria descobrir se aquela história era uma comédia ou uma tragédia. Os papagaios sempre ilustram as comédias, quem é que não conhece uma comediazinha cujo personagem principal é um papagaio? Mas pela gravidade na voz de meu pai, comecei a temer o futuro do papagaio. Medo e pena. O homem, o papagaio e os morangos ficaram atravessados em minha garganta. Que fim meu pai daria à história? Quero dizer, a história não era dele, era um relato verídico, e a realidade não perdoa, sabemos disso. Olhamo-nos em silêncio. Perguntei a meu pai como o papagaio fora morto. Eletrocutado no fio de alta tensão, disse sem pestanejar. Ficou dependurado por uma patinha. Grudado mesmo. O homem chamou o bombeiro para retirá-lo dali. O bombeiro não veio. Chamou os amigos para tentar desfazer aquela visão grotesca bem na porta da casa, mas ninguém quis se expor ao perigo da alta tensão. Muita gente deu palpites, mas solução, nenhuma. E o corpo do que era um papagaio seguiu esticado no fio, na frase, na história.
               Corri para o banheiro com a boca cheia de morangos. Não quis comentar nada. Queria vomitar aquela história infame, mas ela já estava arquivada no meu cérebro, juntinha com a história da Macabea. Devia ser por conta dos morangos. O papagaio, por um instante, era a Macabea. Desprovido de conhecimento, indefeso, apenas repetia o gesto dos outros, as ideias dos outros, e, como ela, gostava de estar em algum canto do mundo, de onde pudesse ver o tempo passar. Macabea, dona de uma alma rala, morreu esmagada por um carro depois de uma cartomante lhe encher a vida de palavras. Ficou caída sobre os paralelepípedos sujos em posição fetal, numa tentativa de abraçar-se a si mesma. Morreu deixando uma vida cheia de promessas que não foram cumpridas. Uma morte que poderia ser evitada. Clarice não quis. Desenrolou oito páginas para a luta muda da personagem que tenta viver. Mas vida e morte ficam tão relativizadas que não sabemos se Macabea está viva ou morta. Na verdade, Clarice nos trai, nos conduz por caminhos oblíquos, nos fragiliza, nos leva para mares nunca dantes navegados, nos faz atravessar a linha limite entre vida e morte como se fôssemos atravessar uma rua e, ironiza, enquanto narradora, dizendo que morre várias vezes só para experimentar a ressurreição.  Com pequenas sutilezas, tenta nos jogar para a morte: “os que me lerem, assim, levem um soco no estômago para ver se é bom. A vida é um soco no estômago.”
               Começo a raciocinar, dentro da lógica que me falta, que a literatura é muito perversa. Capaz de manipular a vida e a morte. E até uma idéia furtiva acende detrás do meu pensamento, sinalizando que eu também sou culpada pela morte do papagaio.  Por enquanto, só posso dizer  que ainda é tempo de morangos.

Lucilene Machado


domingo, 28 de agosto de 2011

 imagem: google

Ah, o amor...

O amor não aprende com o amor, tem sido assim desde sempre. Todos conhecemos histórias lendárias. A literatura nos fornece elementos de sobra para verificarmos as diversas artimanhas que tem o amor para apoderar-se do coração das pessoas. Penélope e Ulisses, Dante e Beatriz, Tristao e Isolda, Romeu e Julieta, Dom Pedro e Inês de Castro... Conhecemos de cor os símbolos pelos quais o amor é representado, o arco, a flecha, o mito do cupido que manipula a flecha até acertar o coração dos mortais, mas é um conhecimento que não produz imunidade.
No romantismo, em uma época em que os casamentos eram arranjados, os jovens apaixonados tinham seus finais no segundo ato.  Acabavam nos conventos, na miséria, ou mortos. Outro mito, este cunhado pelo romantismo foi o vampiro. Inventado por Byron e ressuscitado atualmente pelo cinema. Um mito que passou por Drácula de Bram Stocker, como um exercício de libertação, a paixão que nos liberta do eu. As amantes se entregavam completamente ao Conde Drácula, a ponto de lhe oferecer as próprias vidas. Por meio do amor elas se transformavam em um vampiro, de modo que alcançavam a vida eterna. Algo que vai ao encontro do que disse o ensaísta suíço Denis de Rougemont, de que estamos presos à matéria, presos no interior de nossos corpos e a paixão, enfim, permitiria transcender esse aprisionamento carnal.
Rougemont ficou conhecido por escrever no livro A história de amor no ocidente que “o amor feliz não tem história. Só o amor ameaçado é digno de um romance”. Sem querer polemizar, pergunto: quem já não teve um amor ameaçado ou uma história digna de romance? Se alguém não teve, é melhor ter. Passar por esta vida sem sentir o desejo de escapar de si mesmo e fundir-se com o outro é  não ter vivido plenamente.
Não existe sentimento mais forte do que uma paixão. Algumas são descomunais, terríveis, de derreter os miolos. É arder em febre com lábios e olhos intumescidos e o pensamento se esvaindo como fumaça. É entrar pela porta da lembrança e recordar gestos, pulsações, movimentos e mais uma procissão de acontecimentos que queimam como labaredas. É puro breu.
O consolo é que não somos únicos, sem contar que há narrativas bem piores que as nossas. Não são raras as histórias de amor com finais trágicos. Tristán morre nos braços de Isolda, Julieta nos braços de Romeu. Em Eneida, a rainha Dido se suicida ao ser informada da partida de Enéas. A inteligente Cleópatra, que tinha uma explícita debilidade por generais romanos, presencia o suicídio lento de Marco Antônio na tumba que dividiu com ele. Por causa de um tremor no coração de um homem, Tróia é destruída e junto com ela uma lista de homens ilustres (Heitor, Aquiles e o próprio Páris...) seduzidos pela magia de Helena. Não é à toa que a paixão nos amedronta.
 As histórias são tantas que não há um único ser humano que já não tenha se dedicado à leitura do tema, ou pelo menos dedicado à temática boa parte de seus pensamentos. Todos temos nossas próprias histórias para contar, nossas pequenas tragédias, nossas paixões concretas, escondidas, recolhidas que tocaram o céu, ou o inferno em algum momento. Mas, apesar da nossa pretensa experiência, o amor continua a ser matéria obscura, o reino da confusão e do enigmático. Continuamos a padecer das mesmas ingenuidades, a esperar durante horas por uma chamada telefônica que não chega, a gemer de raiva por sentir fraqueza, frenesi e ser capaz de oferecer ao outro o sacrifício de sua própria inteligência, para não dizer que emburrecemos quando nos apaixonamos. Outras vezes sentimo-nos ridículos, alienados ou envolvidos num amor perverso do qual já se prevê o final: desgraça.
O problema é que somos seres tão pobres, tão precários, tão pequenos, tão egoístas, tão centrados em nós mesmos, em nosso próprio umbigo que não sabemos mensurar o amor. É possível que não saibamos amar. Muitas vezes sepultamos o amor em nome de nossa covardia, nossa vaidade, nossas dúvidas. Acostumamo-nos ao óbvio, ao que pode ser manipulado, às falsas estruturas da compreensão que estão sob o nosso controle como uma forma de preservar nossa condição de seres suscetíveis a paixões malsucedidas.  Mas uma hora dessas a flecha nos acerta no primeiro ataque, os riscos envolvidos são grandes, entretanto, recordando os versos de um poeta português que já quase um  clichê, sempre vale a pena se a alma não é pequena. 
Lucilene Machado

sexta-feira, 29 de julho de 2011

MULHERES DE IDADE MÉDIA


MULHERES DE IDADE MÉDIA


         Chega uma idade em que vamos recuando, vamos ficando longe da linha de ataque, vamos enterrando os sonhos nas trincheiras, limpando o pó de alguma ternura boba e nos conformando com as migalhas que sobejaram das ilusões.
  Chega uma idade em que aprendemos a desistir, esquecer... calar. Vamos nos habituando a conviver com nossas mordaças, nossas amarras... De que vale a liberdade se conhecemos tão pouca gente livre?
  Chega uma idade em que vamos escondendo o romantismo nas fronhas dos travesseiros e nos contentando com o prazer efêmero com hora marcada para acontecer. Acomodamo-nos a um gozo mecânico sem a sonoridade dos “eu-te-amo” e dos “para sempre”. Aprende-se técnicas, métodos, estratégias racionais capazes de desentranhar a libido e compensar o amargo na boca.
  Aos poucos, vamos escondendo nossos tentáculos, vamos nos adaptando aos ditames da razão, obedecendo aos assobios, às leis primárias e ficando quietas em nossas menopausas sem mais questionar os “que teria sido se...”
  A gente se habitua com um jeito sem jeito de ser conquistada. Um jeito sem festa, sem brindes, sem flores... um jeito prescrito que não esconde grandes surpresas. Falta criatividade e persistência, mas a gente aprende a viver sem o exercício da arte de seduzir e sem os remorsos da carne.
  Chega um tempo em que a gente se obriga a compreender a teoria da relatividade, objetividade, contabilidade... tudo tem um preço. Tudo envolve perdas. Que importa? A esta altura, dominamos a arte de perder sem muitas dificuldades. Somos mulheres equilibradas e fortes. Sabemos esconder dores sem precisar disfarçar cansaços.
  Acostumamos-nos às mentiras puídas e acreditamos nas palavras para não comprometer momentos de ternura. Não porque momentos sejam poucos, mas porque viver é uma arte, a arte de acreditar. A realidade que se acredita é a mais real do mundo. Em nenhum tempo se está preparado para conviver com a franqueza.
  Chega uma idade em que descobrimos que podemos perfeitamente viver sem grandes amores. O amor é parte da vida, mas apenas uma parte, e aquela história de ser tão indispensável quanto o ar que se respira é para os compêndios literários. Por mais que a idéia nos desagrade ou entristeça, grande parte das pessoas não vive ou não tem um grande amor.
  Dia chega em que nos conscientizamos de que vida e morte são fatores biológicos. Independem da nossa participação. Que coragem e covardia têm similaridade. Que a vida jogou conosco. Que nossa história não tem nada de extraordinário, porque todas temos a mesma história para contar. Histórias que ouvimos femininamente comovidas até morrermos, profundamente desabitadas. 

Lucilene Machado


segunda-feira, 18 de julho de 2011




De esperança e outros conflitos

Eu e minha esperança temos uma relação tumultuada. Não sei por que me permito. Não sei por que vivo fiando saudades num tear que não me pertence. Eu não sou Penélope e posso sim sair de mim na hora em que eu quiser. Não recebi nenhuma herança poética, nenhum verso grego foi deixado nas páginas da minha ficção. Tampouco fui amada por algum Ulisses. Minha vida é um texto comum que não quer dizer nada. Nem deslumbrante, nem original. Não é tragédia, nem comédia. A narrativa escorre lenta desde o amarelo do sol até o azul cinzento da noite. Não é uma epopéia, mas tem amor. Porque o amor é coisa dos sós. É sentimento que nasce nos parágrafos mais insignificantes e vai se apossando das linhas, entrelinhas e até do que não foi premeditado.
Às vezes paro para me assistir. No primeiro ato, eu com minhas máscaras sutis, com meus instrumentos de sedução, minha trilha sonora, minha sede, meus desejos, minha fábrica de construir sonhos. Eu atando as linhas das palmas das mãos, costurando um destino perfeito, pulsando motivos no santuário da beleza e ouvindo o ritmo da noite embaixo do travesseiro. Não há dúvidas de que o amor é espiritual, sagrado e tem qualquer coisa de sobrenatural. Deus seja louvado, repito para mim diversas vezes.
No segundo, eu cheia de palavras desesperadas, pronunciando nomes de coisas tristes, perdida nos ecos dos meus próprios gritos, inconformada com as migalhas  que as pessoas estão habituadas a dividir e com o pouco que elas estão habituadas a esperar. Eu com hemorragia, vendo a tinta vermelha  jorrar do útero e escorrer pelas  pernas. O seio inchado, a boca amarga, as veias trançadas embaixo da pele, a alma em pus. Não há dúvidas de que o amor é escatológico, inóspito, serve-se das palavras para gangrenar a verdade sagrada, além de entregar a cabeça da esperança numa bandeja para ser servida com o vinho da tristeza. Pai... afasta de mim esse cálice, repito quase sem forças.
 No terceiro ato, me vejo recolhida em minha casa de caracol, resiliente, consciente de que muita coisa se perde pelo caminho nessa grande viagem que é a vida. E que tudo o que se perde não é tão importante, existem outros caminhos a serem explorados, outras possibilidades de viagens; que não vale a pena permanecer no deserto dos labirintos invisíveis e, talvez seja interessante dar teto a um pensamento novo. Puxo automaticamente a linha quase invisível da esperança, o fiapo minúsculo  enganchado em qualquer frase seca e o vou entrelaçando, em cores cruas, com a linha central de um novo poema. Deus, que agora seja para sempre.
Mas a verdade é que já não quero viver nesse ciclo vicioso. Quero sair. Como fugitiva que seja. Quero sulcar as paredes tortas dessa legalidade instaurada sobre mim. Não quero carregar esse paradoxo de bendição/maldição... quero fechar as portas à minha natureza. O amor me cansa. Quero andar descalça sem cortar os pés, quero o silêncio, as flores, a alquimia das cores... quero asas para perambular, campear minha sina, e que a esperança me deixe em paz, de uma vez por todas, amém.

quarta-feira, 29 de junho de 2011


imagem google


Pequenas ficções de inverno

Abrem-se as primeiras páginas do inverno. Como nos anos anteriores, o início da estação é uma página em branco contornada pelo silêncio da espera. Espera-se que o frio chegue de uma vez, que a chuvinha fina e gelada molhe os portais das casas, que o vinho adoce a nossa boca e que a linguagem do amor adquira, nos corpos, uma estampa mais secreta.
Espera-se também a chegada dos ventos uivantes, vindos lá do sul, carregados de mensagens cifradas, de pequenas confissões, pequenas surpresas... O inverno é uma época propícia ao amor, aos reencontros, ao acasalamento. Tudo parece mais romântico. Lareira, filmes, pipoca, mão nas mãos, sofá, cobertores, abraços... as relações ganham novas sugestões e novos significados. Mas também é uma época propícia às recordações e à saudade. No inverno as coisas se deslocam, mudam de lugar. O que parecia esquecido, enterrado, pode voltar a incomodar, às vezes até a doer. Porque no inverno é muito provável você vir a padecer de um frio por dentro. Uma moléstia que não mata, mas faz doer ossos e articulações. Deixa muita gente desesperada atrás de um medicamento, um paliativo, uma palavra, qualquer coisa para amenizar esse mal que não tem nome, não consta nos prontuários, mas incomoda feito reumatismo.
Quem, porventura, já não teve algum nome tatuado na carne viva da memória? Quem já não arquivou em alguma parte do coração uma história ficcional na qual se sentiu plenamente amado? Temos uma facilidade enorme para inventar memórias, algumas mais fortes que a realidade. Tão fortes que nunca saem de nós. Até o coração anda mais depressa quando essas memórias se aproximam do real, é uma aceleração intensa que chega a assustar. Com o passar dos anos aprendemos que a realidade é apenas uma coincidência defasada entre tempo e espaço, que a ficção, sem cuidado e sem juízo,  já havia se antecipado e criado roteiros muito mais originais.
Ando namorando uma idéia original para ficcionalizar um romance. A narrativa, ao modelo realista-romântico, tem o aval do meu coração pulsante e resistiu já a várias noites de sono. O cenário é a Espanha, o tempo é um futuro próximo (2058, por exemplo) e começará pelo meio. Meio do caminho de Santiago. Ele, um caminhante de visão profunda e espiritual, ela uma fotógrafa que vive das imagens e nem sabe quem foi apóstolo Santiago. Embora pareça ser apenas imaginação, os protagonistas cumprem com os requisitos mínimos das histórias reais. Será em um contexto onde as pessoas rejeitarão tudo o que for insólito, original e não-programado. A vida será totalmente pré-estabelecida. A moça, por exemplo, é fruto de uma barriga de aluguel e teve todas as características traçadas antes do nascimento. Da cor dos olhos à escolha da profissão, tudo previamente antecipado, confirmando que os encontros não previstos, nesse futuro, terão raras chances de se concretizarem. No entanto, a história que estou inventando terá final feliz, os dois se encontrarão na catedral de Compostela e de lá sairão com o intuito de dar um basta ao destino pré-traçado e começar uma nova história criada por eles.
No fundo, eu sei que a idéia não é assim tão original, e já deve ter sido explorada em muitos romances, mas o difícil é explicar isso ao meu coração que já anda a galope traçando várias possibilidades de caminhos. Interromper seu percurso poderia provocar um acidente vascular.  A solução, por hora, é o equilíbrio dessa linha que relativiza real e ficcional, até que chegue a primavera e eu possa então voltar a viver a coincidência tardia da realidade.