quinta-feira, 6 de janeiro de 2011

DE PALAVRAS E SILÊNCIOS


    














Desde que cheguei a Madrid, tento ser um pouco surda. Se, cuido em ouvir tudo o que passa, ensurdeço de vez. Como falam os espanhóis! Tento não ser engolida pelas ressonâncias do que ouço, mas devo confessar que me encantam as pessoas. O povo tem a arte de imaginar, de tornar novas as coisas, de puxar água, puxar sonhos, puxar as palavras e escrever a vida em cartazes, em papel jornal e levar a outros para que sejam lidos os verbos dos sentidos e seja avultada a parte humana da humanidade. Os espanhóis cuidam em ser mais humanos do que nós. Não, não é bem isso o que eu quero dizer. O que ocorre é que os espanhóis têm na palavra uma carga lexical que me humaniza, me desarma, além de me afundar num romantismo tardio, inexplicável. Parecem falar com a voz que está detrás da voz. Com a voz verdadeira, aquela que espera uma resposta e está interessada nela. Isso me faz mover o corpo, limpar a garganta antes de acionar o canal da minha primeira pessoa do singular. É bem mais fácil falar por um canal coletivo, com idéias pensadas, experimentadas, comprovadas... mas os espanhóis arrancam todas as minhas capas. Que capacidade têm para chegar ao âmago da intenção. Até minha capa literária é rasgada de alto a baixo.  Será que estou perdendo a literatura para a vida real? Alguém disse que a vida real não existe, tudo é literatura. Aqui sinto o contrário, tudo é vida real. Sinto a realidade em cada morfema pronunciado. Seria o idioma espanhol mais objetivo que o português? Por supuesto. Mas se pode fracassar tanto em um como em outro. Nenhum idioma consegue traduzir todas as nossas inquietações. Clarice Lispector dizia que há muito mais sensações por dentro do que palavras para expressá-las por fora, de modo que vomitou: “nascer me estragou a saúde”. A construção lexical da frase nos faz sentir um pouco impotentes, um pouco confusos, parece aquelas frases de enganar bobo que escrevíamos quando crianças para confundir os amigos mais novos que não sabiam ler muito bem. A verdade é que a linguagem é uma arma. Cada um a maneja como pode. Meu modo preferido é o silêncio. É a maneira de expressar minhas angústias inexpressáveis sem pronunciar palavras miseráveis. Sei que esta é uma dinâmica da minoria. Todavia eu faço parte desta categoria, não mui numerosa, dos que fazem revelações contundentes sem dizer uma palavra. É um modo complexo de comunicação. Ou porque às vezes não há outra solução. Como explicar com palavras que hoje partiu de mim um barco submarino levando o meu coração? Se eu soubesse exercitar o surrealismo provavelmente escreveria um poema terrivelmente exato, ou pintaria, à maneira de Dalí, um autorretrato com todas as ausências humanas. Todos os ocos. Cada uma tomando uma parte do meu corpo. Meu corpo está cheio de gavetas vazias,  e isso não se diz com palavras. Seriam frases mui mal escritas. Enfim, meu silêncio é minha impotência em esclarecer sentimentos e sensações. É uma maneira de me acovardar, de fugir, de não enfrentar o touro e segurá-lo pelos chifres. Não está mal essa metáfora do touro já que estou em terra de toureiros. Talvez, escrever coisas assim me permitissem conhecer os senhores da Real Academia Espanhola, que criam realidades com o idioma e me fazem representar a verdade neste cenário mediterrâneo,  ainda que eu pense, categoricamente, que isso é vida real. Talvez um encontro me intimidasse e eu, automaticamente recorresse ao silêncio. Ou lhes diria em bom português: “nascer me estragou a saúde”, porque em espanhol isso é impossível. 

Lucilene Machado