quarta-feira, 23 de junho de 2010

REFLEXÕES SOBRE O DIA E O ANO DA MORTE DE JOSÉ SARAMAGO

O amor é a última fronteira, talvez a única. O amor é uma edificação abstrata encoberta pela soleira de algum navio que ousa estar muito longe dos calendários, num lugar onde não há noites e o dia entra pela sacada chegando ao fundo da alma. O amor é a maior celebração em que se come a comida devagar, degustando sem pressa, como se digeri a vida, ciente de que um dia será por ela digerido.
Enchi a boca de alface e fui me deixando pastorear a alma. Saramago morreu. Saramago is dead. A língua portuguesa enviuvou-se de seu mais fiel porta-voz. A morte é a mais fria monstruosidade. Não quero morrer nunca. Tampouco quero comer um prato único. Não quero o céu da boca condicionado a um mesmo sabor. A vida é cheia de imortalidades. Creio na imortalidade das palavras. Palavras musicadas, retumbadas, esculpidas, palavras repetidas milhões de vezes. Todas as palavras que dissemos, desde o principio do universo estão por aí, dando voltas, sustentadas pelo magna do universo. Eternidade é isso. No principio foi a palavra, no final, segue a palavra. As palavras dos mortos penetram nossa cabeça formando redemoinhos. O grito dos portugueses ao avistar a terra brasilis pela primeira vez. O grito de independência ou ainda mais distante as palavras que crucificaram Cristo. As palavras de Sócrates, Aristóteles... mesmo que não recordo suas significantes, os significados passam por mim como uma lâmina. De maneira similar, passam por mim as palavras de meus avós a me acariciar a face. Uma brisa ligeira que me conforta e me faz reviver cenas de uma infância preservada pela imagem e pela palavra. Saramago transformou-se em palavras que serão disseminadas por muitas outras gerações. Nascerão no espírito e na alma de cada novo ser com a naturalidade dos lírios no campo. A semeadura foi feita com a coesão de um homem que pensou a partir da consciência da palavra-viva. Pensou por meio do coração do povo. E se agora nos deixa, sua palavra nos agarra. Estarão albergadas nos porões de nossas almas para sempre.
Daí que celebro. Não a morte, mas a herança que nos foi legada. Uma herança que só tem pátria em ilhas férteis, porque as sementes criam e se recriam, para que ninguém pereça de fome e o alimento seja preservado para além das intempéries e estações. Quem sabe um dia, na terra, se compreenderá algo como o amor. Intentar-se-á descobrir onde ele se esconde ou se concentra. O amor não desespera, não se exaspera e se agora me calo é porque estou inadvertidamente viva no dia e no ano da morte de José Saramago.
Lucilene Machado