sexta-feira, 1 de março de 2013

DESERTOS E OUTRAS INFINITUDES




  

Desertos e outras infinitudes

Existem desertos em muitos lugares. Reparo, sem nenhum espanto, que não preciso inventá-los com as areias secas e ásperas do Saara, eles existem além do espaço e do tempo a que foram destinados. Há lugares que  criam verdades só pelo fato de estarem expostos, e o deserto é uma verdade absoluta. A verdade do nada, da ausência, do que não é, por não suportar subexistir. É o silêncio do olhar que sabe ver o tempo esvair-se.
Aqui desse apartamento, preciso alongar e contorcer o pescoço, muitas vezes, para tentar ver o nada. Detrás das construções vizinhas há uma paisagem exuberante, dessas que povoam as páginas da  National Geographic, porém escancara, a cada metro quadrado, uma alma vendida; escancara a sombra de uma culpa que aliena a inteligência. O pântano verde, cercado por arames farpados, limita o alcance do olhar. E eu preciso de infinito, preciso de todos os desertos para receber o maná dos céus. Deus vive no silêncio do deserto. Quarenta anos alimentando um povo que ignorou a verdade do amar. As paixões tremulavam sob o sol como uma deliciosa rival do amor, mas não foram suficientes para acolher o segredo de Deus. Só o amor suporta o nada. O amor de Penélope suportou a ausência surda do rei de Ítaca, suportou a falta de palavras, a falta de respostas... seu aposento cheirava ao enigmático e sufocante silêncio que só as pessoas predestinadas a amar podem sentir. A narrativa épica conta que ela tecia e destecia, e no tear trançava a certeza de que Ulisses iria voltar, e voltou.
Creio que o dom da espera pertence às mulheres. Mesmo inconscientemente, esperamos a vida nos possuir da melhor maneira possível. Às vezes, armamos defesas,  estratégias de recepção para os dias imprecisos. No tempo das ternuras, pintamos a boca com vermelho guerra, sinalizando  desejos inconfessáveis e esperamos o gesto que arrancará  os véus  de nossa sublime condição de fêmea. Mulheres têm os joelhos firmados na esperança, esparramam-se no noturno dos sonhos, fazendo da vulnerabilidade o seu maior heroísmo.
Mas, às vezes, o deserto da espera é extremamente longo. Tão longo que nos habituamos a ele e, se alguma umidade sobe pelos nossos pés, julgamo-la  traiçoeira. O crepitar do sol atroz, que esfola nossas peles, é o mesmo capaz de criar uma delicada couraça de proteção, um amor-próprio que prefere seu próprio deserto, acima de todas as coisas. O deserto da palavra não pronunciada, das páginas em branco, da solidão aberta, do conforto em estar só e da sinistra ausência do amor que não veio no tempo esperado.
Em dias como hoje, quando penso a beleza da aridez plasmada nos rostos endurecidos, sinto-me de mãos vazias. Toda solidão à qual nos abandonamos transforma-se em uma nudez verdadeira que não pertence ao mundo real, porque o mundo real não é feito de verdades, é feito de insolências, remorsos e uma indiferença estrábica a nos olhar de soslaio. Daí o meu contorcionismo para procurar o deserto, para ouvir o barulho do vento, ver o  vazio do mundo girando em torno de mim e sentir sob a pele o toque sedoso e aveludado da eternidade. Porque a eternidade é um deserto em que se atravessa, só.

Lucilene Machado