quinta-feira, 16 de agosto de 2012

Limpando a alma



Limpando a alma

Seu Jorginho limpa o quintal, corta os galhos secos, apara a grama, arranca as ervas daninhas, rastela e assovia uma canção antiga. No meio das folhas molhadas, do vento fino, do cheiro da erva, das coisas puras, a vida acontece em sua totalidade. Do outro lado da parede estou eu, limpando meu computador, desfazendo-me de textos que foram guardados para ler um dia, de mensagens prontas enviadas coletivamente, imagens de cidades que gostaria de conhecer, fotos de pessoas desaparecidas, animais perdidos, entre outras coisas que teimam em permanecer nos compartimentos do meu PC. Com um pouco mais de cuidado, vou apagando mensagens que já deveriam ter sido excluídas, mas estão carregadas de sentimentos. Emails com dores anexadas, com silêncios grudados na página principal e esparsas palavras que rangeram ao toque do teclado. A vida acontece dentro dos meus vazios.
Seu Jorginho me chama para saber se quero enterrar as folhas deixadas pelo outono.  Pergunto se as folhas não têm de ficar na superfície para proteger as raízes no inverno. Ele diz que eu sempre respondo com outra pergunta e muda o tom, diz que vai cortar os galhos do coqueiro. Percebo que ele rechaça o exercício de soletrar a vida. O pensamento escurece.  Ele deve ter lá seu HD entupido de sentimentos antigos, coisas fossilizadas que não há como explicar. Seu Jorge nunca atravessou os portais da Internet, nunca usou a palavra para tocar a mão de outra pessoa, nem deixou a hiper-realidade ocupar espaço em sua vida. Do reino da cibernética, da luta entre o simulacro e a realidade, ele saiu vencedor.
Volto para o computador sentindo-me a parte vencida. Seu Jorge não acredita em nada virtual, o que julgo normal. A literatura sempre se utilizou de personagens céticos, recalcitrantes, espantados, prontos para se maravilhar. Do tipo que enfia as mãos nos bolsos e imita um homem tranquilo sobre a superfície do  mundo. Mas isso não é ficção, é a vida balançando nas folhas das árvores.
Reorganizo as pastas que criei ao longo da minha vida cibernética. Pastas com titulações do tipo “família”, “amigos”, “amigos de verdade”, “viagens que fiz” “livros em espera”, “textos para escrever”, “coisas para esquecer”, “sem soluções” e outras que estão voltadas para o burocrático e não vale a pena botar os nomes aqui. Durante o dia, várias vezes cruzo a fronteira do real para o virtual e alimento essas pastas com fotos, desenhos e principalmente, palavras. Às vezes celebrações ingênuas, outras vezes rechaços, amores diluídos em comunidades sociais, solidão estranha que me acariciou a face numa noite de sábado... palavras para sentir o que não aconteceu, palavras tomadas de surpresa, nuas, ditas às duas da tarde. Pensamentos amarelos que guardam alguma essência sem definição e uma indagação filosófica: “será que nos amamos?” Por supuesto, no princípio reina a palavra.
Nas pastas, como nas plantas, opto por manter minhas raízes protegidas, e mantenho impressões quase sem nexo que narram, indiferentemente, a minha autobiografia sem fatos reais, a minha história sem vida, confissões que fiz sem vivê-las, mas onde estive, inteira, esperando o tempo passar.

domingo, 12 de agosto de 2012

Coisas de Mulher


Ela queria ser amada. Coisas de mulher romântica. Nasce, cresce, envelhece mas, continua uma menina. Sofreu as decepções mais elementares, dessas que incluem abandono, traição, machismo, injustiça, violência e outras minúcias que deveriam ser abolidas da pauta dos relacionamentos. Ainda assim , sobreviveu. As mulheres sempre sobrevivem. São feitas de uma matéria frágil cuja embalagem deveria conter uma advertência: Manipule com cuidado! Porém se a parte interessada se nega a compreender a implícita recomendação do rótulo, ou talvez até seja mesmo inteiramente analfabeta, contribuindo assim para a concretização de trágicos episódios, não suplanta a garra da mulher. Ela reúne os cacos, as partículas, sacode a poeira, dá a volta por cima e... jura (as mulheres sempre juram) que nunca mais se deixará envolver. E na primeira oportunidade, lá está ela caindo no mesmo buraco. 
Coisas de mulher carente! 
 A mulher para quem abro aqui esse parênteses foi constituída também desse intrigante barro. Acreditou em príncipes, em alma gêmea, na outra metade da laranja... alimentou a ilusão de encontrar alguém que a considerasse importante, que compreendesse seus sentimentos; alguém amável, terno, com senso de humor;alguém que a confortasse quando estivesse deprimida, sem advertências ou censuras; alguém digno de confiança que ocasionalmente lhe escrevesse uma carta – um bilhete que fosse – declarando seu amor; alguém que lhe surpreendesse com flores, cartões e confessasse seus sentimentos, pensamentos, fraquezas, frustrações... Durante muito tempo esperou alguém que de vez em quando preparasse o jantar enquanto ela ousasse tomar um banho demorado; que mostrasse simpatia quando ela tivesse alguma indisposição; alguém que segurasse sua mão em público e lhe abraçasse na frente dos amigos.
Coisas de mulher sonhadora! 
Entretanto, descobriu tardiamente(antes tarde do que nunca!) que o homembideal não existia. Se existisse com certeza não seria ela a merecedora de tão preciosa dádiva. Desistiu do intento. Fez pacto. Promessa. Porta trancada. Que dor que dava! Quanta vontade de conhecer o infinito, de colocar estrelas no prato, nacama; de engolir a lua, refletir os sois de outros planetas e correr livremente pelo espaço sideral. 
Coisas de mulher nostálgica! 
Recolheu-se numa casa de caracol. Resistiu as perspectivas tentadoras, matou todas as possibilidades. De vez em quando deparava-se com pensamentos furtivos e escrevia nomes na vidraça... porém logo se redimia, restaurava a casa, reparava as frestas, as fendas, rasgava as idéias e lutava contra as leis da física (ou físicas?) que estão sempre presentes na relatividade dos imprevistos.
Coisas de mulher prevenida!
Entretanto esqueceu de apagar as pistas. Deixou marcas e pegadas na areia. Deixou o cheiro das fêmeas no ar, detalhes que não foram pressupostos. O "inimigo" que veio pelo instinto, conhecia de estratégias, de ciências exatas, de campo magnético, de pólos... positivos e negativos, sabia convergir e divergir .
Seu intento? Atrair e atrair. Só não percebeu que estava andando sobre um campo minado. Faltou-lhe intuição (penso que intuição também é coisa de mulher), o que faltou mesmo foi cuidado.
Quando os jornais publicaram a foto dela como a principal suspeita do crime, ninguém quis acreditar. Nem eu!
Coisas de mulher imprevisível!