sexta-feira, 31 de julho de 2009

BARCO DE PAPEL


Alguma coisa cresce dentro de mim. Selvagem. As horas passam lenta neste mundo que não tem mais cara de jardim. A cor do concreto fere os meus olhos. Entro. Tranco a porta. O mundo também fica trancado lá fora. Um mundo com jeito de pombal. Cada um preso em seu próprio vazio. Vazio de um beijo que foi o último. Vazio deixado pelo suave olhar de um amigo numa manhã de domingo que jamais se repetirá. Por mais que se recupere o amigo, não se recupera o tempo, essa coisa degradável, com cheiro de mofo.
Mas, ontem choveu e, talvez por isso, algumas gotas de lucidez umedeçam meus pensamentos antes que a aridez de espírito vire-me de ponta-cabeça e me faça ver o mundo no reflexo de uma poça d´água amanhecida. Fiz isso quando criança. Penso que todos já fizeram. E depois, soltava barcos de papéis na enxurrada. Minha paixão? Era um navio no mar. Ainda hoje o é. Mas tenho medo de não ter em que me agarrar quando as ondas azuis de algum olhar cobrirem o meu corpo. Não sei nadar o suficiente para sobreviver a esse maremoto. Então fico na praia jogando pedrinhas, molhando os pés na espuma branca e dizendo: boa viagem!
Talvez seja essa uma maneira de não ter de enfrentar o gigante que mora no fundo do mar. Gigante Adamastor que representa o sentido profundo da vida. Mas de que vale isso se a água me povoa por dentro? Lido diuturnamente com essa coisa líquida borbulhando no meu cérebro. Alguém acreditaria se eu dissesse que faço chover? Chovo em qualquer estação, e depois, esse cheiro de terra molhada, essa umidade que faz brotar algas e sargaço, essa semente inchada, essa coisa perigosa germinando... e como diria Leminski “Cresce a vida/ cresce o tempo/ cresce tudo e vira sempre esse momento.” Sempre esse instante que parece já vivido, essas duas palavras pousadas no parapeito da minha sacada, essas árvores que recitam, esse eco do vento entrando pelas frestas das janelas trancadas, essa vontade de sair correndo e mostrar escandalosamente o rosto, de atravessar as estações num trem, de me infiltrar nas multidões, entrar nos ônibus, fazer discursos e ver o olhar assustado das pessoas me olhando. Pessoas que pertencem ao mesmo gênero humano, porém divididas em suas milhares de idiossincrasias. Seria possível ver uma mãe proteger seu filho, um marido posicionar-se à frente da mulher e outros gestos que conduziriam ao ponto omega: o medo que o ser humano tem de seu semelhante. Talvez por isso, todos temos um jeito especial de esconder o rosto; uma filosofia na qual nos escorarmos; observações nas quais adequamos nossos propósitos, e assim segue a vida, porque a paixão, como já escreveu alguém, leva à utopia e a desgraça. Mesmo discordando, também me protejo em minha tristeza justa e procuro evitar esses pensamentos.
Pensamentos incomodam, tanto quanto o pisar na poça d´água acumulada no desnível da calçada. Descobri que meu cérebro é uma folha de papel em branco. Por isso esta necessidade de estar organizando idéias, de estar pintando com tintas imaginárias as letras da minha paixão. Mas agora, peço licença para fazer dessa folha um barco de papel, sem fins, nem razões, porque o mar salgado escorre pelas minhas veias atlânticas, pela minha vida pacífica, pelo meu riso ártico... eu preciso desaguar em algum lugar.
Lucilene Machado

quinta-feira, 30 de julho de 2009

A perda do idioma italiano em Mato Grosso do Sul

Pouco se tem falado sobre a imigração italiana em Mato Grosso do Sul. Os anais do país registram poucas informações, às vezes nenhuma, a respeito do assunto. Os estudos mais fundamentados foram desenvolvidos por universidades de São Paulo, Paraná e Rio Grande do Sul de modo que o jornalismo do estado ficou sem respaldo científico para elaborar matérias com dados mais organizados e precisos.
Mato Grosso do Sul é um estado com dois milhões e trezentos mil habitantes. Destes, quatrocentos mil são ítalo-descendentes e italianos. Aproximadamente 5% da população. Somente em Campo Grande, capital, vivem duzentos mil, a começar pelo governador do estado que é italiano e o prefeito do município que é ítalo-descendente. Depois temos reitores de Universidades, diretores de hospitais, diretores de Museus, representantes eclesiásticos, empresários do setor frigorífico, do comércio, turismo, gastronomia e demais segmentos da sociedade, que são italianos ou ítalo-descendentes. Embora se tenha congregado, nesta região, um número relevante de italianos que tentam preservar um legado cultural, por meio de associações, grupos de danças, um Centro Cultural (que promove cursos de culinária, cursos de língua, câmbios de produtos e serviços, feiras multicoloridas entre outras coisas) os falantes do idioma italiano limitam-se a um contingente de, no máximo, duas mil pessoas.
A consciência da importância de um idioma para se alcançar a compreensão de uma cultura é quase nula. Os que se iniciaram na linguagem fizeram-no por interesses divergentes. A maioria para conseguir cidadania italiana, já que há uma exigência por parte da embaixada. Poucos se dão conta de que a língua e a cultura são inseparáveis e, o idioma não é apenas um instrumento de comunicação. Cultura, pensamento e linguagem se inter-relacionam de tal forma que um interfere no outro sendo fatores igualmente determinantes para a aproximação ou afastamento da nação de origem. O que suscita uma pergunta, por que a perda do idioma foi mais acentuada nesta região do Brasil? Uma questão que intriga, mas não é difícil de ser respondida.
Os italianos chegaram aqui no final do século XIX e início do século XX, influenciados pelas terras doadas pelo governo com o intuito de povoar o extenso estado de Mato Grosso que, no final da década de 70, foi dividido em dois, ficando Mato Grosso e Mato Grosso do Sul. Parte desses imigrantes já habitava o sul e sudeste do Brasil e migraram para o sul de Mato Grosso em busca de melhores condições econômicas. Outra parte veio da Itália com destino ao Uruguai e Argentina, mas, por conta da navegação nos rios Paraná, Paraguai e Cuiabá, acabaram fixando-se no estado. Não foram raros os casos em que famílias acabavam se dividindo, ficando alguns membros nos países do Prata e outros no Mato Grosso. Desembarcavam em Corumbá, Aquidauana, Coxim, Cáceres, Miranda, Cuiabá, entre outras localidades, que ofereciam amplo campo de trabalho para todos. O contingente de imigrantes italianos para esta região foi tão significativo que em 1892 foi fundada a “Sociedade Italiana de Beneficentes” (Societá Italiana di Instrutione-Beneficiência-Fratellanza), uma entidade que se fortaleceu e chegou a construir na Praça da República, em Corumbá, um suntuoso prédio para sua sede própria e que, posteriormente, foi ocupado pelo Governo Federal durante a II Guerra Mundial (1939/1945). Também, em 1914, instalou-se em Corumbá o Consulado da Itália para dar suporte a toda essa gente.
Ligados a terra, como camponeses que antes foram, os italianos tiveram que se adaptar a um outro tipo de cultivo: a atividade pecuária. Considerando que as propriedades para a criação de gado exigiram maior espaço, e, considerando também a extensão de um estado ainda por povoar, as famílias de imigrantes foram se isolando. A falta de estradas, pontes, o transporte precário e outros fatores que envolviam a comunidade da época, contribuíram para que os italianos se integrassem à cultura brasileira, deixando de exercitar com regularidade a língua de partida. Muitos prosperaram rapidamente, deixando, em segundo plano, a idéia de voltar à pátria. Outros passaram por dificuldades financeiras, mas mantiveram-se fortes e persistentes. Eram religiosos e desenvolviam explicações plausíveis para justificar a presença italiana no cerrado de superfície plana recoberta por árvores retorcidas. Era a vontade de Deus. Debaixo de um céu claro e cintilante, o calor incomodava não apenas durante o dia, mas também à noite, quando uma chama, dentro de um bojo de lampião, iluminava os troncos das árvores e as faces esculpidas de esperança de que dias melhores viriam.
Irene Bizotto, empresária do ramo de turismo, conta que tanto a família do pai (Bizotto) como a da mãe que é Lolatto, vieram do norte da Itália, da região de Vicenza e se estabeleceram aqui com o propósito de “juntar algum dinheiro” e mais adiante voltar, mas nunca algum deles voltou. Conta ela que eram todos muito batalhadores e dinâmicos. As avós tinham um traço matriarcal muito latente e conduziam a família com mãos de ferro. Eram fortes, não admitiam a melancolia provocada pela lembrança de uma possível felicidade perdida. Qualquer tendência à autocomplacência era podada rente à raiz. Dizia a avó paterna que o céu era o mesmo em qualquer parte. Na verdade, os imigrantes precisavam ser resistentes e para isso, buscavam conforto em qualquer verdade pronta. Irene declara que compreende a língua italiana, mas não fala. Diz que o plurilinguismo foi um dos principais fatores para o esquecimento da língua. Em seu caso, as duas famílias falavam dialetos diferentes e não conseguiam estabelecer uma comunicação eficaz entre si, de modo que o idioma português foi logo tomando todos os espaços. Conta também que amigos que, esporadicamente, visitavam sua casa, foram abolindo, gradativamente, o idioma de suas conversas. De um modo geral, os imigrantes que se fixaram aqui eram pessoas simples, com baixo nível de escolaridade, vivendo as condições sócio-econômicas prevalentes no norte da Itália e, consequentemente, só falavam a língua restrita ao lugar de onde vieram.
Já o ex-senador da república, José Fragelli in Os italianos em Mato Grosso (PÓVOAS, Lenine C., 1989) diz que a avó, nascida em Livorno, cidade adiantada, com indústria naval e outras fábricas, não só sabia ler e escrever como seguiu lendo com regularidade e foi freqüentadora da Ópera na Itália. Cantava longos trechos de variadas óperas enquanto trabalhava. Seu avô, Giuseppe Fragelli passou antes pelo Uruguai e depois fixou-se em Mato Grosso do Sul. Foi o maior proprietário de casas e prédios em Corumbá, além de sua descendência fazer parte do mais notável círculo político do Brasil. A língua italiana, como na maioria das famílias, foi sendo esquecida pelos mais velhos por falta de um ambiente para a sua manutenção. O que, consequentemente, implicou na identidade cultural. Os filhos dos imigrantes, imersos na cultura popular brasileira, foram influenciados pelos programas de rádio, literaturas, escolas, de forma que eram pressionados a falar o português e, com o tempo, já não conseguiam falar a língua de origem.
O aprendizado e a manutenção de determinada língua fazem parte do fortalecimento dos laços. Segundo o teórico Bakthin, “As linguagens são inseparáveis das visões de mundo e dos seus portadores vivos”, o que significa que, ao se adotar uma nova língua, adota-se também uma nova forma de ver o mundo. Uma língua faz o pensamento dos falantes manter-se voltado para o lugar cultural de origem, de forma que as palavras vão ganhando vida pelo espírito com que é falada, pela veia que pulsa o pensamento.
Quando se perde uma língua, perdem-se também as idéias que vinham sendo retransmitidas ao longo dos séculos, perdem-se as intuições poéticas dos mais antigos, perde-se também o desejo de nomear coisas, de invocar nomes, de dizer verdades e ouvir as verdades que nos dizem. Deixa-se de costurar, naquela língua, os retalhos do conhecimento que vestiu uma cultura. A perda de um idioma leva consigo intermináveis combinações, méritos, modos, mímicas, mágicas e toda uma musicalidade advinda de sua origem. Despertar a memória dessa linguagem esquecida, do êxtase que repousa, como que hibernado nos corações adormecidos é tarefa para os mais jovens, dos que vêem no idioma um âmbito que não se pode medir ou quantificar, um “lugar” onde se podem encontrar os seus semelhantes, como é o caso do Sr. Maurizio Vito Papa, presidente do Centro Cultural Italiano – CCI, e da Câmera de Comércio Ítalo-Brasileira do estado e que, há cinco anos no Brasil, desenvolve um trabalho de resgate, como nunca feito antes, em prol da cultura italiana. Talvez, daqui a algum tempo, o quadro apresente alguma mudança. No momento, o que se pode afirmar é que a cultura italiana influenciou muito o estado de Mato Grosso do Sul com toda sua tradição, no entanto, sobre o idioma, o que podemos dizer é que viveu aqui, respirou os ares sul-mato-grossenses, moveu-se com orgulho e dignidade, nadou em nossas águas, inscreveu-se em nosso tempo e, com ele, fundiu-se, dissolveu-se, desaparecendo deste território, silenciosamente.

Lucilene Machado

terça-feira, 28 de julho de 2009

BIOGRAFIA DE AMORES - texto I



Eu o encontrei sem esperar, quando olhei pelo buraco da fechadura de uma capela em São Paulo. A capela estava fechada e acesa. Tive de decidir se entrava ou não. Dois minutos de espera para atravessar o caminho dele como uma flecha. Eu vestia saia preta com fendas atrás e blusa colada no corpo. Salto alto, olhar altivo e a falsa ilusão de que sou dona do meu destino. Perdoem-me a falta de modéstia, não sei mentir em outro tom. Desde que a porta da capela se abriu, ficou no ar o risco de amor sem limites. Aquele misterioso respirar de fogo que acontece poucas vezes na vida. O véu que cobria meus cabelos colou em minha garganta enquanto a tarde baixava sobre os chuviscos eloqüentes da cidade. Farejei o clima romântico no ar. Um milagre iria acontecer. Pude contemplar os olhos dele a se incendiarem enquanto lia o meu silêncio. Lia e relia. O que vou relatar são imagens, a contundência é por vossa conta. Não consegui ajoelhar-me quando o sorriso dele floresceu sobre o nada. Não tinha muita certeza das coisas, não sabia se podia confiar naquele homem alto com ângulos fortes no rosto. Penso que nunca temos certezas, o que também não faz grande diferença. Certo é que não lutei contra o ritmo natural das coisas. Aliás, nunca crio resistência quando a vida sai de seu lugar comum. E quando a mentira se aproxima da verdade, não ouso classificá-las. Estou longe de ser essencialista.
As sílabas se reproduziram em centenas antes de nos olharmos face a face. Vi as palavras viajando para se organizarem em enormes poemas. Metáforas de sonhos assinalando versos. Dava para escutar o tempo como um relógio à distância. No vitral, cores desenhadas em corações aflitos. Quem são essas almas que acenam clandestinamente para a minha felicidade? Felicidade tem nome e cor. Meu nome eu esqueci. Uma cruz, um sino, uma flor. As nuvens no teto seguindo a mão de Deus. Um arcanjo voando no balanço das lâmpadas. Ajoelhamos ao mesmo tempo numa leve coreografia. Abraçamo-nos enquanto a chuva caía, o céu caía e um novo amor brotava das profundezas divinas. Vestem-se os séculos de cetim que nosso poema nasce no palco de Deus. Abri as cortinas de meus aposentos mais íntimos para ele entrar. Por que não? O amor será sempre um acaso, será sempre um engano que se escolhe e do qual, nada se sabe. O amor romântico que salvou a humanidade também a oprime. E eu me sinto humanidade debaixo dessa pele fina quase envelhecida.
Preciso confessar meus pecados. Damas que montam a cavalo perdem cedo a virgindade. Fui amazonas. Cruzei o mundo sobre uma cela. Mulher estrangeira e peregrina nesta terra. Mas, solenemente declaro que sou filha de Deus e tenho os seios redondos como os da virgem que amamenta o menino. Seria sacrilégio essa comparação? Sou a pecadora que Cristo conforta e salva todos os dias com o sangue que emana de seu flanco.
Ele não apenas acreditou, também usou o dedo indicador para tocar o bico do meu seio esquerdo e com a outra mão segurou o seio direito, redondo e imaculado.
Ouvíamos ao longe um canto gregoriano, o mesmo que ouço nos momentos de perdão. A música, o cenário e a voz dele tornavam o momento sagrado. Mas senti vontade de ouvir Monteverdi, o lamento de Ariadne, ária profana de um amor desgraçado, mas entoado dessa vez com outros versos, de modo santo para expressar meu estado puro. Um canto em soprano, com acordes harmônicos refinados. Um canto mitificado de essência inigualável para delinear nossa inusitada aproximação. Saímos juntos da capela à procura de nossa música, de nossa história, de nosso amor.
Lucilene Machado

sábado, 25 de julho de 2009

A terceira mulher

À guisa de apresentação

Nasci num dia de outono em que o sol brilhava sobre o mar negro do asfalto. As ruas já eram retas e tinham a mesma largura. Meus passos foram regulados conforme a velocidade dos carros. E eu nunca questionei. Nasci de uma cesariana com tempo estipulado: tarde demais! Todos os tratados literários já estavam prontos. Camões já era livro, Quixote já era mito e a antropofagia já era a realidade máxima da literatura brasileira. Restou-me então viver para três coisas: amar, amar, amar.
Minha origem é fantástica, tenho nas veias o sangue de três povos: espanhol, português e indígena. Sou a brasileira típica, com características conservadoras, progressistas e mutáveis. Do índio, herdei traços primitivos, como os olhos oblíquos, ingenuidade e a resistência em acreditar na própria força, ainda que a proporção seja de Davi para Golias. Do colonizador português herdei o nome e a coragem de explorar os setes mares a procura de uma ilha desconhecida para fincar minha bandeira. Do imigrante espanhol, a certeza latente de que é sempre tempo de recomeçar em qualquer parte do mundo e que a minha pátria é a minha casa.
Também não nego que tenho uma contaminação quixotesca, quase demente e que fui educada como menina de família. Aprendi a costurar, bordar, cozinhar e a tecer. Lidar com as linhas me habilitou à escrita. Da lã à seda, das roupas que arranharam minha pele às meias de nylon que nunca deixei de usar. Aprendi a distinguir texturas. Sou capaz de perceber as fibras de uma língua masculina e outras proeminências. Os procedimentos artesanais também me ajudaram a desatar os nós íntimos do meu corpo e a trançar os desejos com fios de cetim. Teci várias vezes a geografia dos prazeres em teares brancos. Uma maneira de sepultar os sonhos nas imagens. O mesmo que faz a literatura com as palavras e com os referentes das palavras. O mundo é feito de coisas e tende a nos imobilizar como coisas. Um homem pescando sobre uma ponte; o sol se pondo atrás do mar; a moça lendo embaixo do ipê amarelo; um canteiro de beijos; um cão deitado na calçada... Mas não se iludam, as imagens são enganosas. A ausência de imagem é o que nos projeta. O tecer e o destecer. A história da mulher tem esse viés, sobretudo a capacidade de ser e não ser ao mesmo tempo, de ocupar e desocupar um espaço e estar sempre presente, ainda que escondida, ainda que nas entrelinhas. Esse é o grande papel da literatura atual, iluminar os significados que nos foram escamoteados pelos desígnios de outros tempos.
Aí vem essa necessidade, suspeita, de pensar isoladamente até alcançar profundidade suficiente para resgatar meu lirismo íntimo. Entretanto, por mais coerente que seja este recurso, não garante o exercício da escrita. É preciso ensaiar a vida até a exaustão. É preciso viajar pelo horizonte da memória até o ponto mais nítido, onde o sol queima as recordações nascidas em noites enluaradas. Depois, é imaginar um leitor. Construir um espaço para que ele se mova e possa interagir, em pé de igualdade, numa conversa comigo. A simplicidade e a doçura também devem ser mantidas para que ele seja tentado a crer que poderia realizar o mesmo trabalho sem muito esforço, embora poucos se atrevam. Depois, o mais coerente é fugir das palavras que se oferecem. Elas estão sujeitas a se agruparem segundo suas afinidades particulares e nos fadarem à servidão. Palavras devem ser oferecidas para quem as lê e não para quem as escreve. O papel do escritor é o de promover revoluções para tornar artístico seu produto cultural. E isso parece incongruente, pois a literatura é o caminho e não o ponto fixo no espaço. Mas se não houver talento para traçar os pontos referenciais, a viagem ficará monótona.
Às vezes, muito longe, vejo as palavras a me acenarem, a dizer que posso me locomover, que posso ir além do que eu vivo. Aceito cegamente o desafio. Na verdade eu sei que signos semelhantes são capazes de entrar em territórios distintos e produzir resultados diferentes, e que a combinação pode ganhar um tom de boa qualidade, mas não é sinônimo de discurso perfeito. E essa compatibilidade, ou descompatibilidade é o que me faz persistir paulatinamente. A capricho, deixo voar a pena e assim que se me apresenta uma ocasião, lá estão as palavras em letras garrafais. Vou criando uma vitrine para expor idéias que me vêm. E, na primeira fila, também eu a repensar o que foi pensado e a perguntar: e agora? Em meu consciente, vozes ordenadas tentando me convencer. O meu auto-engano é o que me salva. Estou habituada aos riscos de todos os dias, aos riscos de ter que viver a própria ficção. A voz rouca das sílabas arranha, sem unhas, os canais da minha garganta. Um sabor que minha boca bem conhece. Mas o sangue é falso. Tudo é falso. Não tenho nome acadêmico para assinar um texto. O nome de família que me deram, não é meu. Poderia dizer que não existo, que as ruas me aguardam em vão, que posso passar o resto do domingo recortando palavras sentada sobre a vida que jamais tive. Afora a isso, tenho um texto que nunca vou terminar de escrever. É meu modo de existir. Em função dele, carrego minha escrita para onde quer que eu vá. Porto Alegre, São Paulo, Madrid... e mesmo para os lugares aonde não escrevo. Tudo é ortografia e sentido. Penso que eu seria capaz de alguma proeza não fosse o vicioso caminho da vaidade. É nessa altura que crio um sofisticado véu de despistamento. A mulher que sou se confunde com a que penso que sou e com a que pensam que sou. Ora as palavras destroem os sentimentos, ora os sentimentos suplantam as palavras e a obra passa a ser uma edificação sem autor definido. Escrever é esse exercício angustiante de reconhecer as próprias limitações. Reconhecer que a verdade pura com a qual nascemos já se definhou e o nosso pensamento mascarado de ideologias pode nos projetar para detrás do palco onde as luzes da ilusão não mais incidem.
Lucilene Machado