sábado, 25 de julho de 2009

A terceira mulher

À guisa de apresentação

Nasci num dia de outono em que o sol brilhava sobre o mar negro do asfalto. As ruas já eram retas e tinham a mesma largura. Meus passos foram regulados conforme a velocidade dos carros. E eu nunca questionei. Nasci de uma cesariana com tempo estipulado: tarde demais! Todos os tratados literários já estavam prontos. Camões já era livro, Quixote já era mito e a antropofagia já era a realidade máxima da literatura brasileira. Restou-me então viver para três coisas: amar, amar, amar.
Minha origem é fantástica, tenho nas veias o sangue de três povos: espanhol, português e indígena. Sou a brasileira típica, com características conservadoras, progressistas e mutáveis. Do índio, herdei traços primitivos, como os olhos oblíquos, ingenuidade e a resistência em acreditar na própria força, ainda que a proporção seja de Davi para Golias. Do colonizador português herdei o nome e a coragem de explorar os setes mares a procura de uma ilha desconhecida para fincar minha bandeira. Do imigrante espanhol, a certeza latente de que é sempre tempo de recomeçar em qualquer parte do mundo e que a minha pátria é a minha casa.
Também não nego que tenho uma contaminação quixotesca, quase demente e que fui educada como menina de família. Aprendi a costurar, bordar, cozinhar e a tecer. Lidar com as linhas me habilitou à escrita. Da lã à seda, das roupas que arranharam minha pele às meias de nylon que nunca deixei de usar. Aprendi a distinguir texturas. Sou capaz de perceber as fibras de uma língua masculina e outras proeminências. Os procedimentos artesanais também me ajudaram a desatar os nós íntimos do meu corpo e a trançar os desejos com fios de cetim. Teci várias vezes a geografia dos prazeres em teares brancos. Uma maneira de sepultar os sonhos nas imagens. O mesmo que faz a literatura com as palavras e com os referentes das palavras. O mundo é feito de coisas e tende a nos imobilizar como coisas. Um homem pescando sobre uma ponte; o sol se pondo atrás do mar; a moça lendo embaixo do ipê amarelo; um canteiro de beijos; um cão deitado na calçada... Mas não se iludam, as imagens são enganosas. A ausência de imagem é o que nos projeta. O tecer e o destecer. A história da mulher tem esse viés, sobretudo a capacidade de ser e não ser ao mesmo tempo, de ocupar e desocupar um espaço e estar sempre presente, ainda que escondida, ainda que nas entrelinhas. Esse é o grande papel da literatura atual, iluminar os significados que nos foram escamoteados pelos desígnios de outros tempos.
Aí vem essa necessidade, suspeita, de pensar isoladamente até alcançar profundidade suficiente para resgatar meu lirismo íntimo. Entretanto, por mais coerente que seja este recurso, não garante o exercício da escrita. É preciso ensaiar a vida até a exaustão. É preciso viajar pelo horizonte da memória até o ponto mais nítido, onde o sol queima as recordações nascidas em noites enluaradas. Depois, é imaginar um leitor. Construir um espaço para que ele se mova e possa interagir, em pé de igualdade, numa conversa comigo. A simplicidade e a doçura também devem ser mantidas para que ele seja tentado a crer que poderia realizar o mesmo trabalho sem muito esforço, embora poucos se atrevam. Depois, o mais coerente é fugir das palavras que se oferecem. Elas estão sujeitas a se agruparem segundo suas afinidades particulares e nos fadarem à servidão. Palavras devem ser oferecidas para quem as lê e não para quem as escreve. O papel do escritor é o de promover revoluções para tornar artístico seu produto cultural. E isso parece incongruente, pois a literatura é o caminho e não o ponto fixo no espaço. Mas se não houver talento para traçar os pontos referenciais, a viagem ficará monótona.
Às vezes, muito longe, vejo as palavras a me acenarem, a dizer que posso me locomover, que posso ir além do que eu vivo. Aceito cegamente o desafio. Na verdade eu sei que signos semelhantes são capazes de entrar em territórios distintos e produzir resultados diferentes, e que a combinação pode ganhar um tom de boa qualidade, mas não é sinônimo de discurso perfeito. E essa compatibilidade, ou descompatibilidade é o que me faz persistir paulatinamente. A capricho, deixo voar a pena e assim que se me apresenta uma ocasião, lá estão as palavras em letras garrafais. Vou criando uma vitrine para expor idéias que me vêm. E, na primeira fila, também eu a repensar o que foi pensado e a perguntar: e agora? Em meu consciente, vozes ordenadas tentando me convencer. O meu auto-engano é o que me salva. Estou habituada aos riscos de todos os dias, aos riscos de ter que viver a própria ficção. A voz rouca das sílabas arranha, sem unhas, os canais da minha garganta. Um sabor que minha boca bem conhece. Mas o sangue é falso. Tudo é falso. Não tenho nome acadêmico para assinar um texto. O nome de família que me deram, não é meu. Poderia dizer que não existo, que as ruas me aguardam em vão, que posso passar o resto do domingo recortando palavras sentada sobre a vida que jamais tive. Afora a isso, tenho um texto que nunca vou terminar de escrever. É meu modo de existir. Em função dele, carrego minha escrita para onde quer que eu vá. Porto Alegre, São Paulo, Madrid... e mesmo para os lugares aonde não escrevo. Tudo é ortografia e sentido. Penso que eu seria capaz de alguma proeza não fosse o vicioso caminho da vaidade. É nessa altura que crio um sofisticado véu de despistamento. A mulher que sou se confunde com a que penso que sou e com a que pensam que sou. Ora as palavras destroem os sentimentos, ora os sentimentos suplantam as palavras e a obra passa a ser uma edificação sem autor definido. Escrever é esse exercício angustiante de reconhecer as próprias limitações. Reconhecer que a verdade pura com a qual nascemos já se definhou e o nosso pensamento mascarado de ideologias pode nos projetar para detrás do palco onde as luzes da ilusão não mais incidem.
Lucilene Machado

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