Madalena, as prostitutas e outras verdades ao rés do
chão
Há
verdades que não cabem na fala. Tampouco cabem na escrita. Há verdades que
circulamos a lápis para apagarmos na hora de um enfrentamento. Às vezes damos
volta, mas nunca chegamos ao núcleo, ao desdobramento da questão, porque antes
disso um redemoinho mistura as coisas, mistura os gestos com os interesses, as
letras com a areia, o sal com as lágrimas, a alma com o corpo... e a verdade é
substituída por outra palavra criada para comunicar os pensamentos que assobiam
toadas vindas de longe.
Ainda
bem que as nossas verdades não se acomodam na cara. Seria fatal. Elas se
acomodam em nossa página em branco. Tenho uma folha em branco onde deposito
meus desejos mais secretos, meu parecer sobre as horas em trânsito, o
pensamento do outro que eu espreito, a palavra alada que cruza minha incerteza,
meu ser elástico, mola, trepidação e tudo que reverbera no tempo.
Nunca
abandono minha folha em branco. Também nunca escrevo nela. Qualquer olhar,
qualquer suspiro, qualquer eco que se perde no abismo são pistas, são sinais
andarilhos que eu recolho na transparência dos sentidos para saber que lado do
vento seguir. Minha folha em branco é minha filosofia, meu mapa para fugir de
mim. Fugir do maniqueísmo que me
ensinaram.
Aprendi
cedo que as coisas eram divididas entre saber e não saber, entre verdade e
mentira, certo e errado e que os impuros seriam punidos por Deus. Os puros, em
contrapartida, herdariam o paraíso. Foi o meu primeiro conflito existencial. Não
queria nenhum paraíso, eu já possuía o
meu. Queria mesmo era brincar no cafezal que avizinhava a nossa casa. Queria correr com as araras e papagaios,
encontrar a casa das corujas, imitar o quero-quero que pousava desconfiado
sobre a cerca de balaustra, alimentar os macacos que torciam um sorriso
canhestro para os possíveis passantes.
Foi
por esse paraíso particular que empunhei espada contra a miséria humana que nos
vem tentar. Contudo, fui expulsa. Não
por Deus, mas pelo progresso que enganou todas as outras palavras e foi
empedrando o terreno, criando esgotos e lambendo a sombra das árvores. Fiquei
engasgada com uma verdade que foi se desfazendo liquidamente garganta adentro. Tinha
gosto amargo e destruiu, com um só golpe, tudo o que eu havia aprendido. Desde
então, venho fazendo ajustes nos significados, propondo pactos, conversando com
Cioran, Clarice, Rosa, Yourcenar... esta última me pôs perplexa. Deixou
entrever Madalena de um modo muito diferente da bíblia. Pedi ajuda a um amigo
que estuda o assunto, e ele me disse que Madalena nunca foi prostituta.
Fiquei esbaforida. Desculpem o termo torpe
num texto que se pretende poético. Mas foi assim que me senti. Acompanhei sua
argumentação com o desconforto impassível de quem já esteve frente a um
lunático. Busquei as vozes dos evangelhos. Segui as referências, abri e fechei
a bíblia, e nada. Maria Madalena não foi prostituta?! Busquei e ainda hei de
buscar, porque no fundo gostaria que ela fosse. Gostaria que todas as
prostitutas se sentissem amadas por meio dela, e pudessem retribuir o amor, se não pela voz, pelo silêncio das
pupilas, pela epiderme e que aquela ferida que arde dentro recebesse um sopro de doçura.
As
prostitutas ficaram órfãs. Eu fiquei remoendo o silêncio eclesiástico de quem
encontrou uma verdade. As palavras bateram-se em retirada. Olhei pela janela e
vi, por detrás do prédio, um paraíso com pássaros, borboletas, libélulas sobrevoando
o pântano azul. Tive a sensação que deveria ir correndo para lá, mas não fui.
Fechei a janela como se uma borboleta fechasse as asas, minha garganta engoliu
em seco o conceito de paraíso, esgarçando vertigens dentro do meu ser povoado pelo frio
do mundo.
Lucilene
Machado.