sábado, 8 de junho de 2013

Madalena, as prostitutas e outras verdades ao rés do chão






Madalena, as prostitutas e outras verdades ao rés do chão



Há verdades que não cabem na fala. Tampouco cabem na escrita. Há verdades que circulamos a lápis para apagarmos na hora de um enfrentamento. Às vezes damos volta, mas nunca chegamos ao núcleo, ao desdobramento da questão, porque antes disso um redemoinho mistura as coisas, mistura os gestos com os interesses, as letras com a areia, o sal com as lágrimas, a alma com o corpo... e a verdade é substituída por outra palavra criada para comunicar os pensamentos que assobiam toadas vindas de longe.

Ainda bem que as nossas verdades não se acomodam na cara. Seria fatal. Elas se acomodam em nossa página em branco. Tenho uma folha em branco onde deposito meus desejos mais secretos, meu parecer sobre as horas em trânsito, o pensamento do outro que eu espreito, a palavra alada que cruza minha incerteza, meu ser elástico, mola, trepidação e tudo que reverbera no tempo.

Nunca abandono minha folha em branco. Também nunca escrevo nela. Qualquer olhar, qualquer suspiro, qualquer eco que se perde no abismo são pistas, são sinais andarilhos que eu recolho na transparência dos sentidos para saber que lado do vento seguir. Minha folha em branco é minha filosofia, meu mapa para fugir de mim. Fugir do maniqueísmo  que me ensinaram.

Aprendi cedo que as coisas eram divididas entre saber e não saber, entre verdade e mentira, certo e errado e que os impuros seriam punidos por Deus. Os puros, em contrapartida, herdariam o paraíso. Foi o meu primeiro conflito existencial. Não queria  nenhum paraíso, eu já possuía o meu. Queria mesmo era brincar no cafezal que avizinhava a nossa casa.  Queria correr com as araras e papagaios, encontrar a casa das corujas, imitar o quero-quero que pousava desconfiado sobre a cerca de balaustra, alimentar os macacos que torciam um sorriso canhestro para os possíveis passantes.

Foi por esse paraíso particular que empunhei espada contra a miséria humana que nos vem tentar.  Contudo, fui expulsa. Não por Deus, mas pelo progresso que enganou todas as outras palavras e foi empedrando o terreno, criando esgotos e lambendo a sombra das árvores. Fiquei engasgada com uma verdade que foi se desfazendo liquidamente garganta adentro. Tinha gosto amargo e destruiu, com um só golpe, tudo o que eu havia aprendido. Desde então, venho fazendo ajustes nos significados, propondo pactos, conversando com Cioran, Clarice, Rosa, Yourcenar... esta última me pôs perplexa. Deixou entrever Madalena de um modo muito diferente da bíblia. Pedi ajuda a um amigo que estuda o assunto, e ele me disse que Madalena nunca foi prostituta.

  Fiquei esbaforida. Desculpem o termo torpe num texto que se pretende poético. Mas foi assim que me senti. Acompanhei sua argumentação com o desconforto impassível de quem já esteve frente a um lunático. Busquei as vozes dos evangelhos. Segui as referências, abri e fechei a bíblia, e nada. Maria Madalena não foi prostituta?! Busquei e ainda hei de buscar, porque no fundo gostaria que ela fosse. Gostaria que todas as prostitutas se sentissem amadas por meio dela, e pudessem retribuir  o amor, se não pela voz, pelo silêncio das pupilas, pela epiderme e que aquela ferida que arde dentro  recebesse um sopro de doçura.

As prostitutas ficaram órfãs. Eu fiquei remoendo o silêncio eclesiástico de quem encontrou uma verdade. As palavras bateram-se em retirada. Olhei pela janela e vi, por detrás do prédio, um paraíso com pássaros, borboletas, libélulas sobrevoando o pântano azul. Tive a sensação que deveria ir correndo para lá, mas não fui. Fechei a janela como se uma borboleta fechasse as asas, minha garganta engoliu em seco o conceito de paraíso, esgarçando  vertigens dentro do meu ser povoado pelo frio do mundo.



                                                                                              Lucilene Machado.