domingo, 14 de junho de 2015

A ver navios






A ver navios...

Sempre me vi atraída pela palavra “porto”. Sua carga semântica ultrapassa o significado. A bíblia apresenta várias vezes a palavra como metáfora de segurança e acolhimento. Mas não se resume a isso, um porto está cheio de possibilidades. Pode-se partir, pode-se chegar, pode-se esperar ou sentar-se à beira do cais para ver passar os dias. A última forma é a que mais se ajusta ao porto de Corumbá, um lugar que, gramaticalmente, verte silêncio.
Aqui, a palavra “porto” tem a entranha aberta para constituição de novo sentido. Mas sei que esse porto já foi, de fato, porto, que muita gente já estendeu os olhos perdidos e vazios para esse horizonte, ao contemplar um navio partindo.  E isso perturba o meu espírito que teima em mergulhar nessas águas silenciadas. Sinto uma ternura confusa... Sei que esse lugar foi cenário para muitos amores. Vastas noites de insônia atravessadas por um rio, por um apito, por um lenço abanando.
Dói esta água, este ar, esta solidão antiga. Dói o abraço e o não abraço. Esse barco pirata navegando no rio profundo, traindo os ventos noturnos... essa lua enorme me espreitando como se fosse um olho de Deus. Deus buscando na terra esse ser insignificante que sou eu, como uma espécie de diversão divina. Tenho medo de Deus, mas isso eu não digo. Quando criança, ensinaram-me que Deus era onisciente. Como a criança não tem as atividades abstratas desenvolvidas, eu entendia que Deus era uma espécie de franco atirador e que me acertaria, na primeira tentativa, cada vez que eu mentisse. Provavelmente na testa, entre os dois olhos, segundo a precisão de sua mira e de sua ira. Mentir devia ser o maior pecado e cada vez que era tentada a fazê-lo, lembrava-me (e ainda me lembro) da recomendação: “Deus está vendo”. Ser perseguido por Deus não é pouca coisa! Mas voltemos ao porto, ao casal que passeia com um cãozinho chamado Platão. Será que sabem quem foi Platão? Será que entendem o que é o platonismo? Possivelmente, nunca tiveram um amor platônico. Eu tive muitos. Tenho ainda um. É recíproco, os amores platônicos sempre são. Entendemos-nos quando nos encontramos pelas ruas, ficamos meio tontos, como esse cão girando ao tentar morder o rabo. O silêncio cava fundo em meu corpo. Para ele crio todas as palavras e todas falham se me aproximo. Sonho com ele pronunciando o meu nome, sílaba por sílaba, soprando todos os fonemas com seus lábios de fogo. Sonho com o meu nome crescendo em sua boca, minha mão conduzindo-o a lugares desconhecidos sem tempo e sem contorno. Imagino sua voz a perguntar-me qualquer coisa tola e mesmo sem eu responder, ele saberá o que eu quis dizer. Conhecemos a gramática do silêncio, a paixão sem regra do que é porque não é, porque se fosse não existiria. Daí que é urgente inventar o amor. Reinventar-me como uma intrusa para que eu mesma me ignore e me surpreenda ao ouvi-lo chamar o meu nome.
Mas, logo me recolho a esse porto cheio de desesperanças, porque meu tempo já morreu nesse passado de ontem. Olho para minhas mãos que começam a murchar. Talvez eu tenha começado a envelhecer e os sonhos já insistem menos. Tudo vai se relativizando. Um pássaro e um navio são a mesma coisa. Esta última frase não é minha, mas deveria ser. Sou professora de literatura e deveria ter me dado conta disso. As palavras têm sonhos. A palavra com o movimento dentro é capaz de se automodificar. Tenho o maior respeito pelas palavras. Elas gostam tanto de me surpreender, que às vezes quero ser a dona delas. Mas os humanos, esses, na maioria das vezes, não têm movimento dentro. Humanos são estáticos. A vida inteira pode se dar em um único  movimento, porque é a parte sonhadora que se movimenta, que volta a sonhar outras e outras vezes. A vida  com sonho salta adiante, desafia, contrapõe-se. E quando o amor nos visita, ficamos cheios de pássaros por dentro, às vezes, navios. Nossas mãos sabem dessas coisas que não entendemos, querem tocar o indizível, o platônico ou um tempo de idas e vindas feito por outras mãos. Era uma vez um porto... o que sobra é poesia,  ou uma vocação irresistível para se sentir vigiada por Deus.
                                                                                  Lucilene Machado