sexta-feira, 12 de fevereiro de 2016




A insustentável leveza do ser

            Apesar do título, não tenho nenhuma pretensão de me aprofundar na literatura de Kundera. Apenas uma analogia com a ideia principal da obra: tudo o que apreciamos pela leveza acaba bem cedo se revelando de um peso insustentável. A vida é balizada por pesos, segundo ele. Quanto mais pesado o fardo, mais próxima da terra está a nossa vida e mais real e verdadeira ela é. Por outro lado, a ausência total de fardo faz com que o ser humano se torne leve, mais leve do que o ar, e faz com que ele voe, se distancie da terra, do ser terrestre, faz com que ele se torne semirreal, que seus movimentos sejam tão livres quanto insignificantes. Então, o que escolher? O peso ou a leveza?
            Perguntas para as quais não vejo respostas concretas. Não somos capazes de determinar os limites das possibilidades humanas que traçam as fronteiras da nossa existência. Nos inventamos o tempo todo nessa incongruência de peso e leveza, nunca estamos certos se estamos agindo bem, mas sim, que estamos agindo como queremos. Queremos voar, elevarmos-nos, subir, subir... até que vem a vertigem e a voz do vazio, embaixo, começa a incomodar e queremos terra, raízes, um território para chamar de nosso, conforto, consolo, laços, rotina. Até acordar ao lado da mesma pessoa, todos os dias, se revela de uma beleza inexplicável. E Kundera chega a uma conclusão sem nenhuma certeza: só tem valor aquilo que pesa.
            Kundera explora as relações de dois casais. Penetra com profundidade no pensamento incoerente do ser humano, procurando alguma explicação para o não-sentido da vida. Impossível, como leitor, não fazer ponderações, não pensar a minha maneira de pesar as relações, levando em conta, naturalmente, os estereótipos que a vivência carimbou em mim. E foram tantos. Provavelmente minha unidade de medida para um relacionamento seria a palavra, as ações e o silêncio. Toda relação precisa de palavras. Elas são condutoras dos sentimentos. São delicadas, românticas e tão poderosas que são capazes de ressuscitar o que está morto. Mas são igualmente perigosas. Se não forem bem dosadas podem ferir de morte. Na palavra reside a complexidade de uma relação, sobretudo porque ela pode ser traída pela verdade das ações. As ações podem condenar as palavras e torná-las malditas. Nada pior que uma sentença maldita trançada sobre a nossa cabeça. Daí as leves escolhas: algumas ações e palavras preventivas. Limites demarcados para conter sentimentos. Ausência de futuro. Vínculo frágil. Euforia. Satisfação, mas, sem os silêncios dos cúmplices, sem a sintonia sossegada dos que estão distantes, sem o exercício sereno de quase tocar o destino do outro. Sem sentir o grão da alma do outro a nos arranhar os olhos. Um detalhe: há riscos. Quando o silêncio é molhado, dói. Dói mais do que a dor, macera nossa existência, é o amor vivido em suas complexas e assombrosas disposições.
            Para Kundera, o ser humano em suas pungentes solidões, tem a necessidade profunda de amor. E o amor está na categoria do pesado. O amor gangrena, fica incrustado embaixo da pele e é preciso ter a coragem lenta de vivê-lo. É uma maneira de sentir a vida fincada em nós como os caibros de uma cerca e, como Quixote, não nos queixarmos da dor. A nenhum escriba jamais ocorreu lamentar essas feridas. Apenas ruminar a angústia e escrever versos.
            Milan é bastante contundente quando trata da vulnerabilidade de interpretação de cada individuo. Somos incoerentes e  pagamos um alto preço por meras questões de orgulho, obsessão, medo, estado de espírito e até mesmo burrice. O consolo é que somos a maioria. Muitos são os que caminham ao nosso lado na solidão, preparando-se para o avanço do mundo, fazendo da harmonia um compromisso a qualquer preço, querendo ser sonhados, mas não querendo sonhar, vivendo a evidência dos outros e desviando-se, sempre, dos caminhos encantados, ainda que inconscientemente. 

Lucilene Machado