sexta-feira, 15 de abril de 2011

NO SILÊNCIO DAS RETINAS



NO SILÊNCIO DAS RETINAS

         Hoje nos deitamos ao mesmo tempo. Há dias em que me deito antes só para ter o prazer de fantasiar, enquanto tu caminhas pela casa e organizas trabalhos dos dias vindouros, disponibilizando tempo para nossos passeios com o cão, nosso olhar estrelas no terraço, cinema, lentas danças, caminhadas pelas avenidas floridas (nosso amor é como cacho amarelo de jasmim), refeições luminosas e tantas outras coisas tão nossas que ninguém saberia senti-las. Depois vem aquela sensação quase infantil de ouvir teus passos se aproximando, sentir teu cuidado ao me cobrir, a ternura doce ao beijar meus cabelos e ajustar-te ao meu corpo, na certeza de não atrapalhar meu sono. E eu finjo, finjo dormir, só para estar desprovidamente entregue aos teus cuidados.
Logo, sinto tua respiração na minha nuca e tento resistir, mas nenhuma promessa de sono seduz mais que o toque do teu pé por baixo do lençol. Uma intimidade que me revira, e eu vou me encostando, me roçando nos teus dedos, corpo manhoso e feiticeiro num jogo secreto de quer-não-quer, vem-não-vem, faz-não-faz... Sinto cheiro de terra, de algas no fundo do mar, noite se desintegrando, átomos dispersos e os calmos despojos do amor. Para sempre as nossas mãos amalgamadas. Para sempre as promessas. Chuvas secretas de teus lábios, és meu, sou tua.
No entanto, em dias como hoje, quando tudo foi premeditado, fica essa desarrumação. Garrafa de vinho embaixo da cama, taça embaixo da torneira, pé de sapato perdido, cadê a roupa? E a gente transpirada, com preguiça de tudo, meio rouca, meio mole... e tu, como um menino, encolhido nos meus braços, transpirando cansaço, sonhando o sonho dos bem-aventurados. Aqui neste quarto tecemos o fio de nossa história. Cada célula é um poema. Amo-te tanto, que tento lembrar uma canção de ninar para te aninhar no meu abrigo. Amanhã quando as flores se abrirem ao orvalho das pétalas, na hora em que as calêndulas se colorirem com um amarelo-luz e o sol perfurar os telhados das casas e entrar pela nossa janela, tu te levantarás da cama devagar e com olhar de silêncio tocará a porta da minha alma. Sempre ouço a voz do teu coração, mesmo quando ela tem escalar o vento dos oceanos e esticar-se toda no infinito para me fazer acordar deste sonho.


Lucilene Machado


domingo, 3 de abril de 2011

O SONHO QUE NÃO ERA MEU

 
 
O SONHO QUE NÃO ERA MEU

          Sonhei que viajava em um trem antigo por entre paisagens belíssimas, formadas por rios, montanhas e uma vegetação em várias tonalidades de verdes. O cheiro de natureza penetrava pelas narinas e fazia brotar dos pulmões uma sensação de felicidade gratuita. De repente, olhei para frente e percebi que no trem não havia maquinista, tinha ao invés disso um cavalo que corria até o comboio alcançar determinada velocidade (como no modelo de carro dos flintstones) e depois entrava em uma espécie de cabine, de onde seguia contemplativo, como um militar.
          Vi pela janela que entre a tal cabine e os vagões havia um engate enorme de ferro . Vi também que estávamos próximos a uma estação e que pela lógica teríamos de parar. Mas como? Quem? O cavalo não daria conta de frear na velocidade em que corríamos. Olhei nos vagões detrás se havia algum passageiro, alguém que soubesse onde se localizava os freios... Gritei com toda a força dos pulmões, como costumamos fazer nos sonhos e nada, não havia ninguém, éramos eu e o cavalo e a estação se aproximando. Eis que no momento exato em que o trem ia descarrilar, devido às bifurcações dos trilhos, tive um instinto de Magaiver. Pequei um ferro grande e pesado, amarrado em uma das paredes do vagão, saltei a janela e introduzi o ferro no parte frontal do vagão. O ferro foi raspando as linhas e pouco a pouco o trem foi parando no lugar que deveria parar. Imediatamente o cavalo saltou e se esticou todo tentando beber água. Saltei também e retirei a parte dianteira do arreio para que ele pudesse sanar sua sede. Logo depois, ele roçou a cabeça em mim como uma forma de carinho, e eu senti uma cumplicidade muda que impediu que o sonho e a viagem terminassem ali. Retornei ao trem, que agora estava lotado. Funcionários da estação tentavam arrumar espaço para malas e mochilas, momento em que eu percebi que os passageiros do meu vagão eram os amigos que eu fiz no último ano. Uns mais íntimos, outros mais distantes, porém todos amigos. A estranheza é que ninguém me reconhecia. Eu era neutra.
          O trem apitou, o cavalo começou a correr até a velocidade do insuportável e entrou novamente na cabine. Dessa vez me olhou e abanou o rabo, o que me fez pensar que, na próxima estação, eu teria de voltar a usar o “freio”. Olhei para aquela gente toda e imaginei que alguém iria se dar conta de que estávamos em um trem sem maquinista, mas eles sorriam, falavam alto, admiravam a paisagem... e nada de olharem para frente. Fui pescando uma palavra aqui, outra ali e descobri que todos iam a um hospital, que não era tão longe, para acompanhar o mais velho deles que iria passar por um procedimento cirúrgico. Imediatamente, eu quis saber o que estava passando, se meu amigo sentia dores, se a moléstia era grave... mas não me ouviam, sequer me viam. Percebi que eu era invisível e com exceção do cavalo, ninguém se dava conta da minha presença. Sem saber qual atitude tomar, sentei-me desconsolada no chão e observei, com certo orgulho, a iniciativa de meus amigos. Jamais havia visto, em vida ou em sonho, um grupo de amigos acompanhar um doente que ia ser operado. Meu amigo enfermo estava radiante e fazia planos para depois da alta. Estava completamente seguro de que tudo iria sair bem. Obviamente, estavam todos respirando aquele mesmo ar de felicidade e com toda a energia positiva proveniente dos amigos, eu também estava segura do êxito. Só não estava segura de fazer parte do meu próprio sonho. O protagonista era outro. Os coadjuvantes também e eu sofria a lenta agonia de estar à margem, enquanto o sonho cortava horizontes pelos trilhos adentro. Lembro-me que até cochilei. Entretanto fui despertada pelo relinchar do cavalo como anuncio da próxima estação. Fiquei esperando que alguém pudesse frear o trem. Àquelas alturas, o sonho já não era mais meu, eu era apenas uma intrusa invisível. Por certo algum passageiro já havia tomado o trem antes e conhecia os procedimentos. Mas, que nada! A estação se aproximava e todos permaneciam tranqüilos em seus assentos. Ao ver que o choque seria inevitável, corri a soltar o ferro da parede, saltar a janela e repetir a mesma coisa ainda mais rápido que a primeira vez. Por um triz não chocamos com prédios e árvores, mas ninguém pareceu se importar.
          Meus amigos desceram com sorrisos e mochilas. Subiram uma escada de concreto que devia levar ao hospital. Eu fiquei olhando até o último desaparecer na curva do meu olhar. Gritei, desejei sorte e por fim chorei por não suportar a angústia de ser invisível. Aos poucos fui despertando com uma sensação muito estranha e fui me conscientizando de que não havia trem, nem cavalo, tampouco eu era invisível. À medida que fui recobrando minha identidade, me parecia evidente que eu havia sonhado um sonho alheio. Aquele sonho era do meu amigo que vivia o papel do doente e eu deveria telefonar e lhe devolver o sonho, e ele que decidisse o que fazer com toda aquela felicidade, com todos aqueles amigos.
          Enquanto tomava café pensava em como dizer isso a ele. Por certo ele iria responder: “só você para ter essas idéias, se foi você que sonhou, o sonho é seu”. Ou talvez fosse se irritar, afinal ele era o doente, poderia soar mau augúrio, azar... Decidi que não. Mas o dia custava a passar, a todo momento me voltava o sonho, o trem, o cavalo, os amigos. Tentei me livrar deles e nada! Eu tinha um sonho que não me pertencia e não gosto de ter nos compartimentos do meu cérebro, coisas que não me pertencem. À noite liguei no telefone celular do meu amigo e estava desligado. Liguei na casa, ninguém atendeu. A angústia cresceu, senti medo de dormir e sonhar novamente o sonho alheio. Fiquei em vigília esperando o dia amanhecer e novamente o chamei. Dessa vez uma voz feminina atendeu e eu fui logo dizendo que queria falar com meu amigo, queria lhe devolver algo. A mulher me disse que não seria possível, pois ele havia sido operado naquela noite e convalescia no hospital.
          Do sonho surreal sobrou um inseto zumbindo em meu estômago como uma pesada digestão. Não tenho a pretensão de decifrar esse complexo enigma, como diz Fernando Pessoa entre o sono e o sonho corre um rio sem fim.