AMOR DILUÍDO
A
cena de amor mais bonita que eu conheço é a do meu pai abotoando a sandália da
minha mãe. Uma cena que se repete desde que eu era criança até hoje. Um momento de leve embevecimento em que
quase me atrevo a confessar que amo profundamente os pequenos gestos de ternura
e também quis ter um amor que fechasse o zíper do meu vestido, abrisse a porta
do carro, abotoasse minha sandália, delicadamente, como se fora a metonímia de
uma longa caminhada.
Mas
não me atrevo, o mundo ficou demasiado moderno e tais homens foram suplantados
por uma política de disputa, política de igualdade ou se foram em fuga para algum país sem nome.
Por isso, silencio um silêncio conhecido. Um silêncio que tenta afastar a
navalha da desesperança da garganta. Tarde demais, as redes dos triviais
egoísmos já me incluíram no mundo fugaz dos práticos, dos objetivos, resolutos,
capazes de fechar a porta da memória e seguir adiante, sem sofrer. Embora me
vista e revista de ternura, sou parte de uma sociedade hedonista para qual só
importa o prazer e afasta de si as possibilidades de dores. Fomos diplomados na
universidade do esquecimento e, às vezes, capazes de nos esvaziarmos tanto
quanto uma camisa seca no varal.
Já
não somos tão felizes, também não sei se importa. Há tantas outras coisas para
se fazer que a paixão já não é essencial. Culpa? O amor nunca me deixou calçar
sandálias, sempre andei descalça sobre pedras e espinhos, e, a cada passo me
afastava um pouco mais do que eu gostaria de alcançar. Tentei outros
movimentos: elástico, mola, agulha, trepidação ... e nada. De modo que não
posso permitir que a sombra da culpa venha a embaçar minha inteligência.
Eu
gostaria de fazer um elogio ao amor romântico, ao amor que abotoa sandálias, ao
amor forte, amor cego, amor que corre riscos, amor ousado, comprometido... mas
já ninguém quer se apaixonar, ninguém quer correr o risco de uma saudade sem
fim, de uma tristeza sem nome, um desequilíbrio fermentado, uma dor a corroer o
coração como um câncer, a vida hoje é outra. O amor intenso foi banalizado,
diluído em experimentos, ensaios, tentativas, a fim de se obter uma
compatibilidade que “valha a pena”. A palavra “amor” foi destituída da
responsabilidade de amar. Amor pode ser fazer sexo, por exemplo. Amor pode ser
usado em qualquer outra relação, sem o constrangimento de não ser real. Porque
o amor não precisa ser real. Zygmunt Bauman fala em “Amor líquido” para tentar
explicar as atuais relações amorosas. Devorei seu livro na tentativa de me
salvar da angústia opressora da desesperança. Mas a filosofia não nos salva.
Empurra-nos para um deserto redondo onde as palavras ficam girando dentro e
fora de nós. Segundo ele, ser digno de amor é algo que só o outro pode
classificar, nosso papel é aceitar essa classificação. Daí a vitrine imensa que
o mundo se transformou. Todos, inconscientemente, se apresentando da melhor
maneira possível para obterem nota favorável em suas classificações. A maioria
sem amor próprio. Mas como podemos ter amor próprio se o amor nos é negado?
Nomeio
as coisas que me faltam. Nomeio várias vezes e vejo que tenho um patrimônio de
palavras sinônimas. Quase todas estão relacionadas ao amor, ou à falta dele.
Vez por outra vou riscando as que julgo impossíveis. Não é uma atitude fácil.
Desce um ar gélido para o estômago, é como se nevasse em algum ponto dentro de
mim. A vida vai me tomando o nome das coisas, vai apagando as referências e sei
que aquele espaço será um deserto de sal onde estará enterrada a memória das
palavras.
Por
hora, ainda me emociono com a cena da sandália. Amanhã estarei no silêncio
inchado dos sós, dos que se obrigaram a escolher o amor líquido, sem assombros,
sem confrontos, com hora marcada para acontecer, sem culpa, sem dores, sem
futuro.
Lucilene Machado