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Jacques-Louis David “Marte desarmado por Venus e as três graças” |
Do amor e suas simbologias
A esperança é um dos fortes fios
usados para tecer a poesia. Toda poesia é grávida de esperança. O amor nem
sempre. A poesia nunca esgota o sonho, o amor sim, esgota todos os canais. O
amor mastiga e digere todas as ilusões, quebra as nossas asas. A esperança é
limpa, o amor não, ele tem um caminho indecoroso, encorpado de restos, de
pedaços de palavras, fotografias rasgadas, folhas amarelas, migalhas que foram
oferecidas em finais de noites, haicais que seriam epopeias, rimas quebradas,
estrofes desprendidas do fim e do início, sem contar os gritos soltos, as
lágrimas salgadas, os cheiros que impregnam todos os labirintos.
O amor é um círculo que nos enlaça e
vai, aos poucos, nos engolindo, feito cobra sucuri. Aliás, o amor incorporou
as características da serpente ainda na
gêneses da vida. Uma serpente enroscada em seu tronco, deslizando pela veia do
tempo e do espaço, uma serpente vestida em suas peles coloridas na região mais
selvagem do Eden, enquanto um amor branquíssimo dormia dobrado sobre o ventre de
um casal em fase de encantamento.
A poesia foi testemunha de tudo. A
serpente seduziu a mulher, por consequência seduziu o homem, incorporando-se
nessa corrente de sedução. A insondável serpente, na contramão da vida, agregou
ao amor esse jogo de verdade-mentira, de ser-não-ser, quer-não-quer, vem-não-vem...
e o amor ficou cheio de reticências. Um ponto final pode não ser o fim. Um
ponto final pode se esticar todo e voltar a se enroscar na frase. Depois,
outras frases seguindo a ideia primitiva, até os envolvidos serem obrigados a aprender
a desamar.
Eu já tive de aprender a desamar.
Uma das experiências mais tristes da vida. As palavras, que não podemos dizer,
nos seguem. Os sentimentos, que não podemos alimentar, nos seguem. A angústia
nos segue e até a esperança vem trotando a passos lentos, espancando as patas
no chão, tentando nos alcançar para convencer-nos do dom da ressurreição. O que
é um perigo. Se ouvirmos a esperança, por um segundo que seja, a recaída é
certa. Ressurreição não existe, amor morto é amor enterrado – repetimos, com o
fim de ouvirmos nossa voz e acreditarmos nela. Nas entranhas uma estranha dor.
Constante e cortante. Alguns buscam um vício, uma brisa, uma rima, um psicanalista
capaz de compreender as confusas palavras que tentam se equilibrar em frases
superlativas.
Depois vem outra etapa, um tempo
comprido e horrível. As palavras vão perdendo os significados. Até as mais
óbvias. O vazio vai invadindo nosso espaço e ficamos a poucos passos de uma
eternidade de silêncio. O amor passa a
assustar mais que todos os fantasmas que habitam o coração humano. Há um pavor
em amar num lugar tão frágil como o mundo, um lugar imperfeito, onde o amor
está sujeito a emudecer, mentir e a aceitar as sugestões travessas de serpentes
que seguem a instigar mulheres e homens pela vida afora.
Solitários, seguimos com nossas
sensibilidades desgovernadas. Transformamo-nos em seres humanos produtos e
nossas escolhas partem das nossas mais básicas conveniências. Mas, não conseguimos
muito bem separar efêmero de permanente, material de espiritual e muito menos a
administrar nossas frustrações. A poesia volta a nos rondar: um corpo quer
outro corpo. Uma alma quer outra alma e seu corpo. Os sinais ambíguos começam a
aparecer, forte carga de ilusão romântica e imprecisão semântica. A mesma história
voltará a se repetir? Talvez sim, talvez não... a propósito, passei a tarde
olhando o quadro de Jacques-Louis David “Marte desarmado por Venus e as três
graças”, alguma coincidência?
Lucilene Machado