quinta-feira, 16 de setembro de 2010

As tartarugas e eu
















Foto: infotortuga.com


As tartarugas e eu

      Um dos passeios que mais gosto de fazer em Madrid é ir à estação de Atocha observar as tartarugas. Algo que me custa dizer, considerando que Madrid tem uma lista infindável de museus, monumentos, exposições, jardins, palácios, arquitetura medieval... e eu, passando horas mortas diante de centenas de tartarugas. Outras questões que colaboram para engrossar a falta de sensatez do hábito é que no meu país posso ver tartaruga quando quiser e deveria aproveitar esse tempo para fazer algo mais cultural, intelectual aproveitável para minha pesquisa, já que não sou bióloga, antes que me perguntem, sou professora de literatura. Também deixo claro que não sou mais uma menina encantada com a fábula da tartaruga e a lebre, cuja óbvia moral nem precisava repetir, mas vou re-acalentar: é não subestimar os lentos. E, sem mais delongas, confesso: a tartaruga é um bicho pelo qual nunca tive nenhum encantamento. Minto, quando pequena meu pai me contava a história de uma festa no céu em que participavam todos os bichos e à tartaruga lhe deram a missão de cantar. A tartaruga era um macho e tinha um vozeirão invejável, cantava tenor. Não sei se trata de uma fábula da tradição oral ou se meu pai a inventou. Meu pai inventava histórias para suprir a falta de livros. Mas cada coisa no seu lugar. Não quero fazer digressões. Nunca toquei o casco de uma tartaruga. Daí que não me parece nada razoável este descer e subir escadas, este ultrapassar corredores compridos, ruídos, vendedores, gente comum e incomum, poluição audiovisual... para enfim chegar ao recanto das tartarugas e respirar. É só isso que faço. Respiro va-ga-ro-sa-men-te olhando para as tartarugas. Elas, sequer, se dão conta. Não sei se elas conseguem ver algo com aqueles olhinhos metidos nas pálpebras grossas. Também não sei se elas ouvem e, para desgraça da criança que vive dentro de mim: elas também não cantam. Não têm, ao que parece, nenhum atributo para divertir as pessoas que se debruçam sobre o parapeito do jardim a admirá-las.
      Isso não quer dizer que elas não tenham qualidades, todos conhecemos seus antecedentes históricos. Já foram animais gigantes, com três metros de comprimento, fato que elas não se lembram. As lembranças das coisas velhas fazem os seres velhos. E as tartarugas não envelhecem, são cada vez mais resistentes ao tempo, capaz de viver quase sem alimentos e difícil de morrer, ou de matar, como queiram. É preciso muito esforço para matar uma tartaruga. Rubem Braga relata em uma crônica a saga de matar uma tartaruga. Cortam-lhe a cabeça e ela continua a bater as nadadeiras. Arrancam-lhe o coração, ele continua a pulsar. A vida está entranhada nos seus tecidos com uma teimosia que inspira respeito e medo. Um pedaço de carne cortado, jogado ao chão, treme sozinho. Sua agonia é horrível e insistente como um pesadelo. Daí que na alma dos algozes surge aquela pobreza envergonhada da velha condição humana. (Mas não se enganem, abro um parêntesis aqui para dizer que os humanos seguem matando tartarugas, inclusive para fazer cosmético).
      Em Atocha, essas criaturas sobreviveram à calamidade de um atentado mortal que calou pessoas de várias partes do mundo. E Sobrevivem, solidárias e tenazmente, a um espaço de superpopulação. Já que além da procriação natural do grupo nativo, pessoas que não sabem o que fazer com suas tartarugas domésticas, as abandonam ali. Desavisadas, as novatas se integram ao velho grupo e ao recanto que pensam ser do tamanho do mundo. Eu desconheço arte tão preciosa quanto a de se integrar e dominar o espaço de sobrevivência. Sobretudo para seres tão tímidos como as tartarugas. Talvez nossa linha de identificação passe por aí, eu também sou tímida, embora de um jeito mais espalhafatoso. Não tenho esse silêncio feroz que penso haver debaixo daqueles cascos. Debaixo da minha casca há uma alma galopando e um torpor animal querendo vomitar palavras que sequer existem nos idiomas. Mas não deixo de me sentir uma tartaruga integrando-se ao velho mundo. Também me esfrego nas areias de um mar desconhecido que me parece fascinante e bebo a vida em goles, com as palmas da mão, para que não termine nunca.
      O cotidiano das tartarugas de Atocha está centrado em um tanque de água parada que faz parte de um jardim de 4000 metros quadrados, intensamente coberto por uma vegetação de folhas largas e estreitas que abusam da beleza dos tons verdes. Aí nadam, tomam sol, rastejam-se sobre uma areia branca posta a cada lado da lagoa e vadiam entre as irregulares pedras escuras que escalam de uma maneira insólita: sobem umas sobre as outras como uma espécie de pirâmide viva até alcançar lugares que julgo, do alto da minha “sabedoria” humana, inóspitos. Observo suas grossas carapaças verdejantes. Umas pequenas, outras enormes, pesadonas, untadas com o mesmo limo viscoso das rochas, a empurrar estações pela vida afora. São várias gerações em uma mesma sintonia. As maiores carregam as menores em suas carapaças inchadas de silêncio, sem lamentações. Estão amalgamadas ao silêncio da eternidade. Às vezes me fixo em uma até que ela atravesse todo o campo do meu olhar e se esconda numa moita verde. Aí nos perdemos. E lá se vai meu raciocínio metafísico. Volto a ser uma representante da ciência da literatura e ela volta a ser um réptil entre tantos. Aparentemente, nada em comum. Retorno a casa com uma sutil sensação de felicidade como se a vida se resumisse nessas pequenas tentações de eternizar-se em qualquer parte do mundo. A propósito, ando devagar para justificar a moral desta fábula/crônica.

Lucilene Machado 

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