domingo, 3 de abril de 2011

O SONHO QUE NÃO ERA MEU

 
 
O SONHO QUE NÃO ERA MEU

          Sonhei que viajava em um trem antigo por entre paisagens belíssimas, formadas por rios, montanhas e uma vegetação em várias tonalidades de verdes. O cheiro de natureza penetrava pelas narinas e fazia brotar dos pulmões uma sensação de felicidade gratuita. De repente, olhei para frente e percebi que no trem não havia maquinista, tinha ao invés disso um cavalo que corria até o comboio alcançar determinada velocidade (como no modelo de carro dos flintstones) e depois entrava em uma espécie de cabine, de onde seguia contemplativo, como um militar.
          Vi pela janela que entre a tal cabine e os vagões havia um engate enorme de ferro . Vi também que estávamos próximos a uma estação e que pela lógica teríamos de parar. Mas como? Quem? O cavalo não daria conta de frear na velocidade em que corríamos. Olhei nos vagões detrás se havia algum passageiro, alguém que soubesse onde se localizava os freios... Gritei com toda a força dos pulmões, como costumamos fazer nos sonhos e nada, não havia ninguém, éramos eu e o cavalo e a estação se aproximando. Eis que no momento exato em que o trem ia descarrilar, devido às bifurcações dos trilhos, tive um instinto de Magaiver. Pequei um ferro grande e pesado, amarrado em uma das paredes do vagão, saltei a janela e introduzi o ferro no parte frontal do vagão. O ferro foi raspando as linhas e pouco a pouco o trem foi parando no lugar que deveria parar. Imediatamente o cavalo saltou e se esticou todo tentando beber água. Saltei também e retirei a parte dianteira do arreio para que ele pudesse sanar sua sede. Logo depois, ele roçou a cabeça em mim como uma forma de carinho, e eu senti uma cumplicidade muda que impediu que o sonho e a viagem terminassem ali. Retornei ao trem, que agora estava lotado. Funcionários da estação tentavam arrumar espaço para malas e mochilas, momento em que eu percebi que os passageiros do meu vagão eram os amigos que eu fiz no último ano. Uns mais íntimos, outros mais distantes, porém todos amigos. A estranheza é que ninguém me reconhecia. Eu era neutra.
          O trem apitou, o cavalo começou a correr até a velocidade do insuportável e entrou novamente na cabine. Dessa vez me olhou e abanou o rabo, o que me fez pensar que, na próxima estação, eu teria de voltar a usar o “freio”. Olhei para aquela gente toda e imaginei que alguém iria se dar conta de que estávamos em um trem sem maquinista, mas eles sorriam, falavam alto, admiravam a paisagem... e nada de olharem para frente. Fui pescando uma palavra aqui, outra ali e descobri que todos iam a um hospital, que não era tão longe, para acompanhar o mais velho deles que iria passar por um procedimento cirúrgico. Imediatamente, eu quis saber o que estava passando, se meu amigo sentia dores, se a moléstia era grave... mas não me ouviam, sequer me viam. Percebi que eu era invisível e com exceção do cavalo, ninguém se dava conta da minha presença. Sem saber qual atitude tomar, sentei-me desconsolada no chão e observei, com certo orgulho, a iniciativa de meus amigos. Jamais havia visto, em vida ou em sonho, um grupo de amigos acompanhar um doente que ia ser operado. Meu amigo enfermo estava radiante e fazia planos para depois da alta. Estava completamente seguro de que tudo iria sair bem. Obviamente, estavam todos respirando aquele mesmo ar de felicidade e com toda a energia positiva proveniente dos amigos, eu também estava segura do êxito. Só não estava segura de fazer parte do meu próprio sonho. O protagonista era outro. Os coadjuvantes também e eu sofria a lenta agonia de estar à margem, enquanto o sonho cortava horizontes pelos trilhos adentro. Lembro-me que até cochilei. Entretanto fui despertada pelo relinchar do cavalo como anuncio da próxima estação. Fiquei esperando que alguém pudesse frear o trem. Àquelas alturas, o sonho já não era mais meu, eu era apenas uma intrusa invisível. Por certo algum passageiro já havia tomado o trem antes e conhecia os procedimentos. Mas, que nada! A estação se aproximava e todos permaneciam tranqüilos em seus assentos. Ao ver que o choque seria inevitável, corri a soltar o ferro da parede, saltar a janela e repetir a mesma coisa ainda mais rápido que a primeira vez. Por um triz não chocamos com prédios e árvores, mas ninguém pareceu se importar.
          Meus amigos desceram com sorrisos e mochilas. Subiram uma escada de concreto que devia levar ao hospital. Eu fiquei olhando até o último desaparecer na curva do meu olhar. Gritei, desejei sorte e por fim chorei por não suportar a angústia de ser invisível. Aos poucos fui despertando com uma sensação muito estranha e fui me conscientizando de que não havia trem, nem cavalo, tampouco eu era invisível. À medida que fui recobrando minha identidade, me parecia evidente que eu havia sonhado um sonho alheio. Aquele sonho era do meu amigo que vivia o papel do doente e eu deveria telefonar e lhe devolver o sonho, e ele que decidisse o que fazer com toda aquela felicidade, com todos aqueles amigos.
          Enquanto tomava café pensava em como dizer isso a ele. Por certo ele iria responder: “só você para ter essas idéias, se foi você que sonhou, o sonho é seu”. Ou talvez fosse se irritar, afinal ele era o doente, poderia soar mau augúrio, azar... Decidi que não. Mas o dia custava a passar, a todo momento me voltava o sonho, o trem, o cavalo, os amigos. Tentei me livrar deles e nada! Eu tinha um sonho que não me pertencia e não gosto de ter nos compartimentos do meu cérebro, coisas que não me pertencem. À noite liguei no telefone celular do meu amigo e estava desligado. Liguei na casa, ninguém atendeu. A angústia cresceu, senti medo de dormir e sonhar novamente o sonho alheio. Fiquei em vigília esperando o dia amanhecer e novamente o chamei. Dessa vez uma voz feminina atendeu e eu fui logo dizendo que queria falar com meu amigo, queria lhe devolver algo. A mulher me disse que não seria possível, pois ele havia sido operado naquela noite e convalescia no hospital.
          Do sonho surreal sobrou um inseto zumbindo em meu estômago como uma pesada digestão. Não tenho a pretensão de decifrar esse complexo enigma, como diz Fernando Pessoa entre o sono e o sonho corre um rio sem fim.

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