domingo, 13 de novembro de 2011

Meu professor de português


Meu Professor de Português

Não  posso  descrever  com  fidelidade  o  seu  rosto.  Há  certas minúcias  e  detalhes  que  o  tempo  se  encarrega  de  apagar.  Não posso,  por  exemplo,  descrever  seu  nariz,  sua  boca,  mas,  em algum  canto  do  meu  cérebro  ficou  gravado  seu  olhar  míope, suas  sobrancelhas  cerradas  entrecortando-se  acima  dos  olhos. Era um olhar tão grave que eu não ousava desafiar. Ele foi meu professor  por  um  período  de  três  anos.  Durante  a  5ª,  6ª  e  7ª séries,  consecutivamente.  Excluindo os  domingos,  eu  o encontrava todos os dias. Era mal-humorado, carrancudo e não fazia  a  mínima  questão  de  cumprimentar  os  transeuntes. Esboçar um sorriso? Só para as meninas do magistério. Quando elas  passavam  ele  estendia  um  olhar  benevolente,  como  se tivesse  alguma  carência  afetiva,  e  sempre  exclamava  a  mesma frase: “ah, se eu tivesse 20 anos...”
Nessas horas eu chegava a ter  pena  dele.  O  silêncio  que  procedia  após  a  fala  parecia avolumar-se  dentro  do  peito,  sufocando  o  espaço  interior.  Com olhos faiscantes ele destilava sobre nós o veneno da frustração: “Você aí que parece a Belém-Brasília, leia sua redação”. Essa era eu.  Às  vezes,  também  me  chamava  de  magricela,  quando  não, dizia  apenas  “você  aí”.  Nunca  me  lembro  de  tê-lo  ouvido pronunciar o meu nome, nem os de minhas amigas. Será que ele temia  criar  algum  laço  mais  profundo? Se  essa  era  a  intenção,  ele conseguiu. Eu mesma cheguei a ter ódio dele. Ódio esse, que eu guardava em sigilo e disfarçava com um sorriso amarelo pra que ele  não  percebesse.
 Mas,  quando  o  rancor  silencioso  vai  se avolumando  e  transforma-se  numa  bola  enorme,  arremessada freneticamente  do  estômago  para  a  garganta,  num  ricto nervoso, a gente desrespeita a lei e vomita. Vomita tudo de uma só vez. Eu estava cansada de tanto escrever redação, narração, descrição,  dissertação...  e  todos  os  “ãos”  que  ele  usava  para discriminar  os  textos.  Pior  é  que  nos  mandava  ler  em  voz  alta. Líamos,  e  ele  criticava:  “Precisa  melhorar,  está  faltando  a essência”.  Quanto  tempo  vaguei  à  procura  da  tal  essência! Pensava  ser  ela  um  fluído  aéreo  que  eu  jamais  conseguiria captar.  Naqueles  três  anos,  tudo  o  que  aprendi  estava relacionado  com  a  produção  de  textos.  Na  época  eu  já  sabia  o que  era  cacófato,  pleonasmo,  ambigüidade,  metáfora... entretanto,  não  sabia  diferenciar  o  objeto  direto  do  indireto. Mas  como  eu  ia  dizendo,  chegou  o  dia  do  vômito.  Eu disse vômito? (Céus!  Se  ele  lesse  isso...)  Era  a  prova  do último bimestre da 7 ª série. Como de costume, ele nos mandou escrever uma redação. Tema livre.
                Dissertei sobre o seguinte tema: “O professor que eu quero ter”. Fui fundo. Imersão total. Devolvi a  ele  a  palavra  cortante  que  havia  me  escalavrado.  Devolvi  na forma mais aguda das estruturas lingüística. Penso que doeu. Na entrega dos boletins, ele chamou-me à parte. Tremi. As pernas bambearam.  Os  joelhos  chegaram  a  bater  um  no  outro.  Fui capaz  de  imaginar  a  expressão  da  minha  mãe  observando  um zero  no  meu  boletim...  como  me  enganei!  Ele  havia  me  dado dez! Apertou minha mão e disse: “Vá em frente, você encontrou a essência.” Descobri, numa fração de segundo que a essência é o  conjunto  de  sentimentos  que  dá  vida  ao  texto,  é  a  natureza das  coisas  reveladas  na  sua  intimidade.  Essa  é  a  melhor imagem, dele, que guardei na retina da minha memória. Mesmo por linhas tortas, levou-me a tomar gosto pela escrita. E isso é suficiente para eu perdoar meu velho professor de português.

Lucilene Machado

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