terça-feira, 15 de julho de 2014

Labirintos e um dedinho de prosa





Labirintos e um dedinho de prosa

            Fiz um café forte antes de começar essa crônica. É um recurso para conseguir estar atenta até o final. Quando se fala de labirinto, a própria figura representativa da palavra nos tonteia. São voltas e mais voltas a cercear a nossa liberdade. O primeiro labirinto foi inventado para prender o Minotauro, um personagem  mitológico com corpo humano e cabeça de touro que assombrou a infância da minha geração. Construído pelo brilhante artesão Dédalo, o labirinto era uma perigosa armadilha, da qual ninguém poderia escapar vivo. Até que uma mulher, linda e perspicaz, teve a feliz ideia de entrar no recinto desenovelando um novelo de linha. Pronto, estava desvendado o mistério. Ariadne entrega o segredo  em troca de milhares de vidas, inclusive as nossas.
            Hoje por mais voltas que damos, nós as mulheres, temos um fio condutor que nos fará escapar como um réptil de qualquer labirinto. A minha linha, finíssima, feita de fios de cabelos, tecida com todo tipo de amarras é a escrita. É nela que me agarro para procurar a saída. Às vezes, tenho de confessar, ela me deixa desnorteada. Suas letras etéreas podem dizer qualquer coisa como mentiras notórias ou verdades elegantemente falsas, atadas com forças imunes ao discernimento. Quando sinto que poderei desequilibrar e derrapar por alguma ladeira, tranço os fios com tinta vermelha hemorrágica, brotada da própria veia, e os deixo depositado sobre a pele grossa da terra, assim posso penetrar nos recantos mais temíveis e estar segura que encontrarei o caminho inverso, caso queira voltar.
            Com o passar do tempo, fui compreendendo melhor os traçados, a me refugiar em algum desenho côncavo nas horas de perigo e a jogar com as sentenças decisivas. Já não desperdiço meu fôlego, nem meu pensamento com as buscas intensas. Sei décor as propostas de amor que por debaixo não é amor. Já não são perigosas como antes, quando zoavam dentro dos meus olhos como abelhas. Também  já não utilizo as armas de sedução que possam perfurar algum corpo desprotegido. Equilibrei-me com a idade, uso palavras quentes para os períodos de incerteza e frias para os dias de segurança, os dias em que poderei desabotoar a blusa, desabotoar a memória e deixar escapar toda espécie de tessituras. Chamam isso de fluxo da consciência. Tudo muito leve e solto como uma dança que gira instantaneamente e obedece, por si só, os movimentos da natureza que antecede ao grande estrondo que se chamou vida. Nessas fases, sinto-me em um santuário revestido de beleza, ou me sinto transformada em uma lenda mitológica, dona da vida, sem correr mais nenhum risco de me perder. Mas logo vem a consciência, o minotauro que está bem lá na profundidade do ser e se atreve a me provocar. Ele não sabe que eu uso tudo para tecer minha escritura, que presto atenção nos fios que vêm dos sonhos, nos fios que  vêm dos animais, dos rios, das árvores, das pedras, da vegetação rala, das coisas usadas... uso tudo para trançar os elos que demarcarão o meu caminho. É o que me dá coragem para ir sempre um pouquinho mais adiante e espiar a fera um pouco mais de perto. O pior engano é o da tranquilidade. Até mesmo o mais cômodo silêncio  contem os movimentos e os ruídos das palavras que não foram ditas. Sei que isso é lugar comum, mas sei também que felicidade tem que ser outra coisa, algo além da imobilidade, tem que ser qualquer coisa mais parecida com um desafio, ou ter ares de unicórnio, rinoceronte, minotauro... sei lá, nem sei se o que eu quis escrever era exatamente isso, fato é, quando escrevo me sinto eu, tão completamente eu, que seria capaz de dizer “estou feliz outra vez”, mesmo que eu tenha de preparar o próprio café.
                                                                       Lucilene Machado

Um comentário:

Comentários