terça-feira, 3 de abril de 2012

Par perfeito



Par perfeito
 
         Começo aqui a contar o nosso começo. Nosso amor é cíclico. Começa e termina. Depois outros ciclos, recomeços, paixão e o inevitável declínio. O início de tudo foi inusitado.  Cheguei  a casa dele com um mapa e uma mala. Edifício alto, elevador antigo. A porta se abriu e a constatação: ele não era ele, eu não era eu. Índice de intimidade zero. Entrei mascando o medo.  Medo das paredes brancas, das janelas sem vistas externas, do cheiro de sabonete... tudo inspirava um cenário misterioso como aqueles dos filmes de suspense.  Conhecíamo-nos  pela internet, fato que por si só dá margem a alguma suspeita. Depois os conselhos dos amigos: “cuidado, você não conhece a família dele... você não conhece os amigos dele... os grandes crimes acontecem por descuidos e etc e tal”. Sentei na poltrona que me pareceu mais confortável, mas nada me era confortável naquele momento. Desconcertada, evitava olhar para ele, não queria a responsabilidade de quebrar o silêncio. Não queria falar de nós, pensar em nós, “nós” não existíamos. Fixei-me na estante de livros enquanto imaginava uma saída para aquela situação.  Percebi de súbito que a maioria dos livros eram policiais. Com qual intenção as pessoas leem livros policias? A presença do perigo me acercava. Mudei de lugar para ficar mais perto da estante e mais longe dele. Precisava encontrar uma obra que eu já tivesse lido e rendesse assunto para toda a noite. Ele também se mudou. Sentei no chão. Ele perguntou se eu estava com medo. Obrigatoriamente, respondi que não. Mas o terror dançava em meus pensamentos. Arrependi-me cem vezes de ter aceito a proposta. Culpa do teclado, das palavras, da intimidade que se cria nos ambientes virtuais.  Ele se levantou. Eu o acompanhei com os olhos. Iria buscar uma arma? Apanhou o telefone e pediu uma pizza. Os crimes  acontecem sempre depois do jantar. Respirei. Ele foi à cozinha e trouxe um vinho. Vi que ele tinha braços fortes e poderia dominar facilmente uma mulher. Elocubrei e elocubrei em minha frágil condição feminina. O vinho, a pizza... o vinho que se multiplicasse, amém!  Eu não queria dormir, não podia dormir, precisava ter defesas, mas me lembro de ter recostado no tapete, ali mesmo na sala. Sucumbi em um sono profundo. Sonhei que era beijada e acarinhada por um anjo, sobre lençóis brancos de seda. E não precisava falar porque minha pele em contato com a pele dele, falava; as ondas dos meus cabelos rolavam em círculo, contornando nossos desejos. Os beijos fechavam meus lábios e ele, sem pressa, viajava pelo meu corpo inteiro. Fiquei inerte enquanto o tempo estacionou um metro acima de mim. Quarenta anos no deserto, agora aquela fertilidade branca penetrava todas as minhas células de uma vez. Uvas na minha boca para compensar a aridez da terra. Ia acumulando as emoções que partiam de todos os meus sentidos. Sinestesia era a palavra. Fui reta e temente a Deus em toda a minha vida. Merecia o paraíso. Merecia o corpo celestial. Merecia a glória...
Um ruído foi nascendo bem no fundo do silêncio. Seria o tempo? Ouvi ruídos de carros, de gente, de conversas sibilinas, agudos dissonantes, vento, tempestade... num impulso despertei-me atordoada, enquanto braços fortes me abraçaram sobre uma cama com lençóis branco de seda. Não dissemos nada.

 Lucilene Machado, da obra Biografia de amores.

Um comentário:

Comentários