domingo, 14 de dezembro de 2014

A ESTÉTICA DA DOR





A estética da dor



Lucilene Machado



Sou parte de um grupo de pessoas que sofrem dores incuráveis. Não é necessariamente uma dor física, não é dor que atormenta,  não é dor que incomoda paulatinamente, não é dor que rouba a felicidade... é uma dor fina recolhida na sala de espera da vida, em profundo silêncio. Algo difícil de explicar, já que a brutalidade da linguagem engana o pensamento com suas voltas e contorcionismos e não sabemos identificar onde está localizada tal dor. A língua, quando não se reveste de sua forma mais abstrata, desvia os sentimentos para outras esferas, onde se formularão  inúmeros matizes para compreender a vida, esse embuste de Deus, que também não compreendemos. 

            Essa dor de que falo não pode ser tratada em consultório de psicanálise, simplesmente porque ela desaparece quando tentamos conceituá-la. Mas sabemos que ela seguirá entranhada em nossos músculos e, inclusive, sabemos o momento em que irá doer. Sempre que uma chuva fina cair sobre o asfalto negro, em uma tarde morna e cinzenta, ela tomará conta da vida e nos restarão apenas os olhos abertos e vazios. Quando calculamos mal o nosso tempo e ele sobra em alguma dobra do dia trazendo em si lembranças de tantos outros dias, dói, dói, dói. Quando a madrugada sobrevém, dormem as pessoas, dormem as coisas e o sono não chega, os pensamentos começam a escorrer pelo corpo, pelos sonhos... a dor morde, rumina, mastiga, engole, metaboliza, dilui-se pelos poros e volta a se instalar no descampado do peito.

A dor é uma questão privada, distinta uma das outras. Os mais capazes chegam a produzir a estética do padecimento. Frida Kahlo pode ser sua mais original representante, portadora de múltiplas dores as transformou em arte, fazendo do corpo o cenário da própria vida. Mas sua maior dor foi na alma. Das vinte e cinco punhaladas que levou, dizia, só uma foi mortal, a da alma. A dor sinistra da traição sacudiu sua vida inteira e cravou espinhos até em seu pensamento.

            Clarice Lispector foi outra que converteu a dor em beleza. Sua dor mais cruel foi a descoberta da esquizofrenia do filho. Não, ela não confessou. Foi uma dor impronunciável. Desde então foi guardiã de uma tristeza infinita. As mães sofrem dores inconfessáveis. Dores desconhecidas que atormentam o pensamento, dores reais e irreais. As mães de filhos-mortos, então, carregam uma dor de palavra composta lacerando o peito diuturnamente. Uma dor de feridas abertas que não nos compete julgar. É preciso valentia humana até para imaginá-la. Enfim, todas as mães sofrem dores silenciosas, todas atravessam um deserto branco umedecido pelas lágrimas.     

 Florbela Espanca também iniciou sua produção literária a partir de uma imersão na própria dor e comparou-se a um Dom Quixote fêmea a combater moinhos de vento, sempre enganada e sempre a pedir novas mentiras da vida. A dor era visível em suas palavras porosas. A solidão se apresentava em um nível tão avançado que dificilmente seria amenizada. Passou a vida costurando as coisas da vida com as coisas da morte. Passava os dias alimentando a morte, dando água, comida e enfeitando-a com flores. Tentou suicídio duas vezes. Na terceira tentativa, fechou os olhos definitivamente, simples, docemente, como à tarde uma pomba que tem sono.

            A relação entre arte e dor pode parecer estranha, mas é uma representação clássica. Aristóteles já dissertava sobre a “purgação” como um conceito de fruição. Uma purgação que só funciona graças à identificação e à compaixão que sentimos diante da dor, da morte, da tragédia. A dor tem uma representação na história da literatura tão importante quanto a beleza. Tem espaço garantido na bandeja da arte enfeitada com uvas da tarde e vinho da tristeza entregues em odes intermináveis que entendem as coisas humanas e permitem que, ainda assim, se siga vivendo no santuário da beleza.

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